Cidadania e Direitos humanos
Aula 1
Cidadania e Participação Política
Cidadania e participação política
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Ponto de Partida
Olá, estudante! Esta aula dedica-se ao tratamento de uma questão de fundamental importância para a vida em sociedade: a cidadania e a participação política. Como você responderia à pergunta: Qual é o estado da cidadania no seu país e no mundo hoje? Será que caminhamos para uma verdadeira evolução da forma e do conteúdo da cidadania?
Para estabelecermos um termômetro relativo ao sentir-se e ao agir como cidadão, bastaria iniciarmos com algumas perguntas essenciais: a forma como você ouve falar dos problemas e projetos de seu bairro, cidade, país, mundo, encorajam-no a buscar uma participação ativa e tomar as melhores decisões para atender aos interesses da comunidade? Ou, ao contrário, afastam-no e desestimulam-no do esforço de entender e participar dessas decisões que afetam a sua vida e a de todos que estão ao seu redor?
Por que será que essa esfera de atuação política consciente dos reais problemas de uma sociedade parece ficar cada vez mais distante e vazia de sentido? Será que as dinâmicas do alto poder têm hoje interesse que você se sinta como um cidadão da sua cidade, do seu país e, simultaneamente, do mundo? De que forma esses problemas atingem sociedades que desrespeitam os direitos humanos?
Esta aula lhe fornecerá instrumentos para entender como a noção de “cidadão” variou muito ao longo do tempo: veremos que a história do exercício da cidadania tem sido marcada por tensões, progressos e regressos. Temos o simples, porém, nobre objetivo de apresentar elementos para sua formação profissional, e esperamos que você consiga se apropriar de reflexões proveitosas e as utilize com sabedoria.
Vamos Começar!
Cidadania
Vamos nos dedicar, neste momento, a pensar a noção de cidadania. Essa noção é antiga e relaciona-se a um campo de discussão muito amplo, sendo objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento. Trata-se de um tema bastante vivo no presente, que gera um enorme interesse, curiosidade e até mesmo fervorosas polêmicas, justamente pela sua importância para a compreensão de diferentes aspectos da vida em comunidade (Conti; Alves, 2019). A cidadania, na verdade, exerce um fascínio para todos que se defrontam com o seu sentido político, colocando-nos a essencial e difícil questão: o que significa ser parte intrínseca e indissociável de uma coletividade?
Propomos um percurso didático que lhe permitirá entender especialmente o sentido político da noção de cidadania diante da emergência dos estados-nação na Europa moderna, assim como a leitura que se produziu do importante modelo de cidadania que existiu na Antiguidade, na Grécia.
Um dos historiadores mais renomados que estuda a civilização grega, Moyses Finley, em seu livro Democracia: antiga e moderna (1988), fornece elementos contextualizados historicamente para entendermos a origem do cidadão. O especialista nos transporta, em primeiro lugar, para o espaço privilegiado do exercício da cidadania: a pólis grega (ou seja, a cidade grega). Tornou-se, por isso, bastante conhecida a expressão “cidadão é aquele que participa do governo da cidade”. Em especial, Atenas foi o lugar onde a política foi repensada e redefinida na prática. Nesse contexto, a forma e o conteúdo da cidadania se colocaram como inseparáveis da noção de democracia direta, na qual aboliu-se a hierarquia no exercício do poder para dar espaço à igualdade dos cidadãos no plano político, o que permitia a real participação popular nas decisões a respeito da vida na pólis.
Em Atenas, nasce o primeiro significado de democracia: o governo do povo. E o povo, longe de ser entendido como uma massa tomada por paixões – ou, ao contrário, excessivamente apática e inábil –, era considerado um corpo de cidadãos capaz de compreender os problemas da realidade da pólis e de tomar as melhores decisões para atender aos interesses da comunidade. Por esse motivo, o povo tinha o direito de ter voz nas assembleias, ou seja, o direito de opinar acerca do funcionamento da pólis no presente e em qualquer projeto para o seu futuro. Veja, portanto, que não se valorizava um conhecimento técnico sobre a vida na cidade. Afastava-se uma definição elitista de poder, para afirmar o sentido ativo de compreensão do funcionamento da pólis e de seus problemas (ou seja, os próprios moradores daquela pólis seriam as pessoas mais indicadas para tomar decisões).
O cidadão é pensado, portanto, como um ser indissociável da cidade, o que acompanha o direito de opinar sobre o seu destino. Quando o cidadão ateniense participava das assembleias, não distinguia os seus interesses pessoais dos interesses da pólis. A possibilidade da iniciativa popular torna a política algo natural da pólis e mostra com clareza a função saudável do debate político, em que tomam conteúdo o exercício da liberdade individual de expressão e a ação no espaço público. No exercício da cidadania se manifestam elementos de maior relevância, como a soberania popular e a justiça que emana do povo (Conti; Alves, 2019).
Não podemos deixar de fazer uma crítica à exclusão que se fazia, nesse mesmo contexto, das mulheres, dos escravos, dos “estrangeiros” e de outros grupos sociais, do exercício desse direito. O que importa perceber, pelo momento, é que o sentido de uma cidadania ativa se colocava como o principal elemento da vida coletiva na pólis. Esse sentido fez a civilização ateniense ser considerada, já naquela época, um modelo, por iluminar questões tão essenciais da vida em sociedade, que continuam a ser estudadas depois de séculos, até nos dias atuais. Vale destacar, no entanto, que o modelo ateniense não se tornou hegemônico na Antiguidade.
Muitas mudanças na organização política das sociedades mediterrâneas e europeias ocorreram após esse contexto ateniense. Durante a Idade Média, a Europa Ocidental foi marcada por uma organização política baseada nas relações feudais e monarquias, que limitavam bastante essa concepção de cidadão. Além disso, a Igreja Católica detinha grande poder de organização política nas sociedades da cristandade europeia e o cristianismo também serviu de base filosófica para que, na modernidade, fosse afirmado um sentido de cidadania completamente diferente daquele ateniense, muito mais centrado, como veremos adiante, no indivíduo.
Siga em Frente...
Dimensões da ação cidadã
Na Idade Moderna, com a emergência dos estados-nação – organização do poder político que abrange uma população mais numerosa e um território maior –, recupera-se, em alguma medida, a noção de cidadania greco-romana, mas procurando estendê-la a um corpo mais volumoso de pessoas, de forma que o sentido da participação ativa na vida pública acaba sendo colocado em segundo plano. A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ambas de 1789, são marcos importantes dessa redefinição.
Nesse novo contexto, ser cidadão invoca um regime republicano, que retira os privilégios de participação política até então restritos à aristocracia, à monarquia absolutista e ao clero, para afirmar seu sentido universal, colocando todos os nacionais de um Estado em posição de igualdade quanto a direitos e a deveres. Ainda que o sentido primeiro da participação na vida política não seja colocado em primeiro plano, o cidadão moderno tem inegavelmente o direito de participar do governo de sua vida, de sua cidade e de seu Estado.
Lembremos que esse cidadão moderno, como na Grécia, emerge como um sujeito que também tem deveres civis. Jean Jacques Rousseau (1717-1778) foi um pensador de enorme importância para entendermos essa ligação do sentido moderno de cidadania com a coletividade. Para Rousseau, a cidadania não é um presente, mas um dever de participação política na defesa do “interesse geral” – que é universal a todos os cidadãos – acima dos interesses particulares e individuais. Só assim uma república poderia garantir o bem-estar de seus cidadãos, ou seja, não fecharia os olhos para a justiça social e para a construção de uma sociedade menos desigual. Infelizmente, essa dimensão coletiva da cidadania, do dever cívico para com a coletividade, se tornará uma voz dissonante em termos de valores e de modelo de atuação política na modernidade (Conti; Alves, 2019).
O princípio do “interesse geral” não ditará os rumos da organização do poder político na modernidade. O antropólogo francês Louis Dumont, em seu livro O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna (1985), coloca em evidência como o indivíduo, ao contrário do que dizia Rousseau, se afirmará como um sujeito de direitos e deveres que não será mais visto, como na Grécia, como uma parte intrínseca e indissociável da coletividade: a noção de indivíduo, que existe independentemente da comunidade, ganha força nesse período. Além disso, na modernidade, continua existindo a problemática interdição da participação na vida política de mulheres e de grupos sociais de baixa renda, além de grupos étnicos (no caso das colônias europeias, sobretudo os indígenas e os negros) e dos estrangeiros (não nacionais).
A comparação do significado da cidadania na Grécia e na modernidade ilumina, na verdade, o que diversos críticos têm apontado como o principal limite do desenvolvimento da cidadania. No estado-nação, caminha-se muito mais em direção a um modelo de organização política da sociedade que valoriza a extensão do direito de voto a um número maior de pessoas. O que está em jogo é a representatividade desse número extenso de cidadãos por partidos, não a esfera da ação política e da participação consciente. Esses elementos problemáticos, além de outros que podem ser discutidos, mostram como não é possível afirmar que a passagem do tempo significa necessariamente uma evolução da forma e do conteúdo da cidadania, bem como de seu exercício.
No século XX, por exemplo, há tensões que apontam para diferentes direções a fim de pensarmos a cidadania. Por um lado, houve lutas importantes empreendidas por grupos sociais – mulheres, operários, negros, indígenas – para a conquista do direito ao voto, que resultaram em progressos importantíssimos, como o reconhecimento do voto feminino na maioria dos países; o fim do voto censitário (vinculado a um patamar de renda); o reconhecimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos; o fim do regime de apartheid na África do Sul e em outros territórios ainda submetidos ao regime de colonização, que excluíam os nativos do direito à cidadania; o reconhecimento da diversidade e do direito à cidadania dos povos indígenas nas Américas do Sul e do Norte (Conti; Alves, 2019).
Por outro lado, talvez o século XX seja o exemplo mais explícito de grandes retrocessos para pensarmos a cidadania. Os regimes totalitários, como o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, e o stalinismo na URSS, tinham como característica principal a negação dos direitos políticos da população em favor de um regime autoritário com poderes ilimitados para tomar todas as decisões do governo de um Estado. O direito de participação política era considerado uma ameaça a ser combatida com a força das armas. Na América Latina, o século XX também foi marcado por ditaduras que se baseavam nesse mesmo princípio e se disseminaram como modelo de exercício do poder político em quase todo o continente.
A Constituição de 1988 e os impasses da desigualdade no Brasil do século XXI
Se consideramos o contexto brasileiro, percebemos que a participação no poder político foi historicamente restrita a poucas pessoas. Na América portuguesa, sob a lógica do absolutismo monárquico, a maioria da população – composta de negros considerados escravos, indígenas, e outros grupos subalternos – era excluída do direito de participação política formal no Estado Colonial. Com a independência e o período imperial, a renda funcionava como critério central de exclusão do exercício de cidadania. Mesmo quando o regime republicano foi instaurado (1889), o pertencimento ao sexo masculino, o nível de escolaridade e as relações de trabalho seguiam excluindo a maior parte da população. Por esse motivo, há uma discussão bastante importante a respeito do caráter oligárquico (restrito a um pequeno grupo de pessoas) do funcionamento da República no Brasil. Ainda que o direito formal de voto tenha se alargado para toda população por meio de reivindicação desses grupos, outros mecanismos de coerção da livre escolha de representantes foram historicamente praticados, como o voto de cabresto. No que se refere à substância da cidadania – direitos políticos básicos, acesso à renda/trabalho dignos, educação e saúde de qualidade, moradia, entre outros – a referida condição de “estrangeiridade” da maioria da população brasileira continua sendo um problema atualmente.
A ruptura radical em relação ao poder de exercício da cidadania ocorreu durante o regime ditatorial (1964-1985), que representa uma página da história do Brasil a qual expressa o total desrespeito aos sentidos da cidadania discutidos até este momento, sejam aqueles da Antiguidade, sejam aqueles das democracias liberais da modernidade.
Foi ao findar o último regime de exceção que se produziu a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988): o mais importante marco histórico de reafirmação da cidadania e de reinstituição de um regime democrático, que possibilita a participação política dos cidadãos. A soberania popular foi reafirmada em seus artigos, que tratam das questões mais essenciais da organização da sociedade brasileira e estão acima de qualquer outra legislação do país, pois contêm os princípios de um Estado baseado em direitos que podem ser reivindicados por qualquer cidadão do país. Esse pacto federativo emerge em um momento histórico no qual o sentido de participação da cidadania representava uma das principais bandeiras de luta da sociedade brasileira e de seus diferentes movimentos sociais. Nesse momento, os cidadãos brasileiros e não nacionais residentes no país denunciavam com toda força os prejuízos causados à sociedade por um regime que nega (ou limita) a possibilidade de a população agir politicamente. Simultaneamente, afirmava-se um projeto de sociedade que, além de garantir o direito civil de representatividade nas decisões políticas, também referendava uma cidadania social na qual os direitos básicos – como a saúde, a educação, o trabalho digno, a moradia e o meio ambiente – ampliam o significado da noção de cidadania. O acesso universal a esses direitos básicos para garantir a cidadania está previsto na nossa Constituição como um dever do Estado e da sociedade brasileira (Conti; Alves, 2019).
Sem dúvida, a Constituição de 1988 é a maior expressão de um pacto de civilização que devolveu ao Brasil a possibilidade de caminhar em direção ao respeito da cidadania. O que não significa que todos os seus artigos sejam perfeitamente aplicados na realidade da sociedade brasileira. De fato, são inúmeros os impasses substanciais da cidadania existentes na realidade do funcionamento da sociedade brasileira com suas antigas e novas faces das desigualdades, que acompanham a exclusão da cidadania. Basta pensarmos, por exemplo, no retrato das grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Fortaleza – ou qualquer outra grande cidade do país – onde uma parcela significativa da população é excluída desses direitos.
Vamos Exercitar?
Você já reparou como as calçadas das nossas cidades estão cada vez mais povoadas por pessoas que vivem em situação de rua? Esse cenário nos provoca a pensar os limites da cidadania, determinados sobretudo pelos imperativos econômicos que modelam o funcionamento das sociedades e fazem da renda um requisito de acesso à cidadania (Conti; Alves, 2019).
Essa constatação não exclui a importância de entendermos que a Constituição é um instrumento para que a cidadania também possa ser efetiva a essas pessoas. Por um lado, os direitos sociais nela contemplados colocam como um dever do Estado democratizar o acesso aos direitos fundamentais, ou seja, criar instituições que possibilitem a oportunidade de um trabalho digno, educação, saúde e moradia, dentre outros direitos. Por outro lado, a Constituição resguarda o regime democrático e situa essas pessoas – a despeito de viverem em situação de rua – como sujeitos de direito que, portanto, podem reivindicá-lo. Qual seria, então, a melhor forma de ter os direitos da Constituição respeitados? Será que a abolição dessa Constituição seria o melhor caminho? A resposta a essa pergunta é muito simples: não se conquista direitos abolindo direitos! O exercício da participação ativa, da reivindicação desses direitos e da luta para que sejam efetivados é o único caminho para que a cidadania no Brasil deixe de ser apenas um direito formal e torne-se realidade.
Precisamos compreender para além da nacionalidade; notamos, portanto, que a passagem do súdito ao cidadão se torna ainda mais complexa ao entendermos as dimensões da cidadania. Os desafios do pleno exercício da cidadania são certamente muitos, mas não há dúvida de que a potencialidade dessa articulação é a única forma de enfrentarmos as barreiras à cidadania que se colocam cada vez mais em nossos dias.
Saiba Mais
A filosofia antiga e a democracia
Na filosofia antiga, a cidadania formal, referente à condição legal do cidadão, não é colocada em primeiro plano. A cidadania é situada no campo da política, invocando a participação ativa e em condição de igualdade de todos os cidadãos na vida democrática. Essa impostação é retomada pela filosofia contemporânea ao estabelecer a relação da cidadania com as teorias da democracia, lembrando-nos de que aqueles que vivem sob uma ditadura são definidos súditos, não cidadãos (Enciclopedia di Filosofia, 2008, p. 173).
Aprofundar conhecimentos
A obra organizada por Jaime e Carla Pinsky, História da cidadania (2010), disponível em sua biblioteca virtual, fornece um importante panorama da cidadania desde a Antiguidade.
O capítulo “Cidadania ambiental: natureza e sociedade como espaço de cidadania” (p. 545–562), de Maurício Waldman, apresenta bases mais concretas para se refletir a respeito de uma nova concepção de cidadania em debate atualmente, que considera mais enfaticamente as relações entre as sociedades e o meio ambiente.
PINSKY, J.; PINSKY, C. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2010.
Exemplificando
José Damião Trindade (1998) coloca em evidência os artigos basilares da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Note que o povo, diferentemente do sentido que assumia na democracia em Atenas (demos = povo, cracia = poder), não é considerado soberano, ou seja, quem exerce o poder:
“Os homens nascem e são livres e iguais em direitos” (art. 1º) e “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem” (art. 2º). Quais são esses direitos? São quatro: “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (art. 2º). A soberania foi atribuída, no artigo 3º, à “Nação” (fórmula unificadora) e não ao povo (expressão rejeitada, pelo que podia conter de reconhecimento das diferenças sociais). A liberdade (art. 4º: “poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem”) só pode ser limitada pela lei, que deve proibir as “ações prejudiciais à sociedade” (art. 5º). A lei “deve ser a mesma para todos” (art. 5º) (Trindade, 1998, p. 58).
Referências Bibliográficas
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 27 out. 2023.
CONTI, H. M. de; ALVES, P. V. M. Sociedade Brasileira e Cidadania. Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2019.
DUMONT, L. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
ENCICLOPEDIA GARZANTI DI FILOSOFIA. Milano: Garzanti, 2008.
FINLEY, M. Democracia: antiga e moderna. Tradução: Waldea Barcellos e Sandra Bedran. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
PINSKY, J.; PINSKY, C. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2010.
TRINDADE, J. D. L. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In: PROCURADORIA GERAL DO ESTADO. Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos do Estado, 1998.
Aula 2
Direitos Humanos: Por que e Para quem?
Direitos humanos: por que e para quem?
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Ponto de Partida
Olá, estudante! Desejamos boas-vindas a você nesta aula que vai tratar de um importante dilema da sociedade moderna: a afirmação dos direitos humanos. Como veremos, um dos fenômenos bastante ativos na contemporaneidade envolvendo os dois lados desse dilema (direitos humanos e lógicas de punição) diz respeito aos deslocamentos forçados de população (Conti; Alves, 2019).
Diferentes formas de desrespeito aos direitos humanos se traduzem na impossibilidade de vida no próprio local ou país de origem, provocando tais deslocamentos. Todavia, a tendência dos Estados tem sido tratar essas pessoas como potenciais criminosos, para governar esses fluxos de pessoas com variadas técnicas de vigilância e controle nas fronteiras e dentro dos próprios países.
No Brasil, como veremos, grupos internos, como a população negra e periférica, são as maiores vítimas dessa lógica. No entanto, o país não está separado do contexto internacional de aumento das migrações e tende a receber cada vez mais deslocados forçados e refugiados de outros países. Sobretudo, é importante lembrarmos que o Brasil também já foi, durante a ditadura, produtor de refugiados. Esta aula nos ajudará a entender os fatores de desrespeito aos direitos humanos nesse período obscuro da nossa história e da de outros países da América Latina.
Naquele momento, os brasileiros foram reconhecidos como refugiados, portanto, tiveram seus direitos humanos respeitados em diversos países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Portugal e outros. Hoje, segundo dados do Comitê Nacional Para Refugiados (Conare, 2018), nós recebemos solicitantes de refúgio de mais de 80 países, em particular haitianos, senegaleses, venezuelanos, sírios e angolanos. Você avalia que o Brasil caminha para o reconhecimento do direito de refúgio e também dos direitos humanos dessas pessoas ou, ao contrário, acredita que o país tende a assumir políticas que associam ideologicamente a imigração ao crime – o que se chama atualmente de “crimigrar” (Moraes, 2016)?
Iniciaremos com o tratamento dos direitos humanos na Modernidade e seu desenvolvimento no berço do Iluminismo. Além de indicarmos a legislação de referência desses direitos, ofereceremos elementos para a compreensão de como o Iluminismo foi fundamental para a afirmação de princípios-base de enorme importância e validade para os tempos atuais. Em seguida, abordaremos os crimes contra a humanidade e seus casos emblemáticos para entendermos questões vivas até hoje, que colocam desafios para as sociedades, até mesmo a brasileira (Conti; Alves, 2019).
Vamos Começar!
Iluminismo e jusnaturalismo
Nesta aula, vamos começar trabalhando com a noção moderna de direitos humanos. Deixaremos de discutir como esse direito era concebido nos séculos precedentes – a partir da perspectiva religiosa e filosófica –, para nos concentrarmos em um período de enorme riqueza da sociedade ocidental, denominado Iluminismo. Trata-se de um movimento cultural que nasce na Europa do século XVIII, no bojo do processo de transição da sociedade feudal à capitalista. O Iluminismo representa um marco histórico de mudanças significativas na forma de conceber o mundo, com reflexos nas mais diversas áreas do pensamento: filosofia, literatura, artes, física, matemática, direito. Esse período é chamado de “século das luzes” por defender como valor central o conhecimento, a razão e o progresso da ciência e da cultura (Conti; Alves, 2019).
A imagem da luz era colocada como o antídoto ao que se considerava um atraso e, sobretudo, um entrave ao desenvolvimento dos sujeitos e das sociedades: a ignorância, a superstição, o fanatismo religioso, a intolerância e os abusos da Igreja e do Estado. A razão passa a ser entendida como necessária, portanto, para iluminar uma nova visão de mundo, fundada em valores como tolerância religiosa, liberdade de pensamento, liberdade política, liberdade religiosa, direito de resistência à tirania, separação do Estado e da religião (laicidade), educação universal. Muitos desses valores, que foram afirmados por diversos pensadores, exerceram um papel importante para efetivar mudanças no plano jurídico, político e econômico-social daquela época e permanecem sendo fundamentais para pensarmos as sociedades até hoje.
Acreditar na razão e na sua capacidade libertadora também acompanhava um ideal de sociedade que tinha que se aperfeiçoar, progredir, caminhando em direção às luzes propiciadas pelo conhecimento científico, baseado na observação e na demonstração empírica, e não em dogmas. Esse ideal iluminista será depois muito discutido e criticado, sobretudo por teorias – por exemplo, Adorno e Horkheimer (1986); Foucault (1994) – que polemizam em relação ao fato de que a racionalidade moderna, a técnica e a ciência impliquem automaticamente a emancipação humana.
A noção de direitos humanos na modernidade é gerada nesse rico berço cultural do Iluminismo e não deixa de refletir uma forma de crítica à sociedade, com um papel também transformador, que, naquela época, foi encabeçado pela nascente classe burguesa. O liberalismo guiava os princípios econômicos, e o jusnaturalismo – origem do latim ius naturale, direito natural – o Direito, com base na doutrina que considera todos os indivíduos portadores de direitos inatos naturais. É importante perceber que a doutrina jusnaturalista, que tem diferentes vertentes teóricas, mesmo na Antiguidade e na Idade Média, é reafirmada e desenvolvida no período iluminista a partir de uma base racional (não religiosa). A igualdade e a liberdade formais são norteadoras dessa concepção jusnaturalista moderna (Conti; Alves, 2019).
Há quatro ensinamentos iluministas fundamentais para a reflexão a respeito dos direitos humanos:
- A autonomia do indivíduo, que é considerado um ser capaz de tomar decisões autonomamente, de ter liberdade para pensar, questionar, criticar; daí vem o reconhecimento do direito natural, que o considera sujeito de direitos.
- O humanismo: o ser humano é colocado no centro para pensarmos a finalidade dos nossos atos e qualquer outro aspecto da vida social, considerando, portanto, a vida humana também um direito inviolável.
- O universalismo: o pertencimento ao gênero humano é considerado mais importante do que o pertencimento a um grupo em particular, ou seja, a ideia de que todos os seres humanos são portadores de direito.
- O respeito à diversidade: pensar universalmente, em defesa da humanidade, significa reconhecer as diferenças, sejam elas religiosas, de pensamento ou políticas.
Se lermos os textos de filósofos iluministas como Jean Jacques Rousseau (1712–1778) e Immanuel Kant (1724–1804) e, em seguida, os artigos da Carta de Direitos Americana (Bill of Rights, 1789–1791) e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), compreendemos que esses marcos jurídicos fundadores dos direitos humanos na modernidade estão profundamente enraizados nos ideais iluministas. É exatamente por esse motivo que esses textos e essas legislações não envelheceram! E mais do que nunca é nossa tarefa, hoje, recuperá-los para poder retomar ideais que podem ter um papel transformador, em particular para combater os obscurantismos presentes na contemporaneidade.
Siga em Frente...
Crimes contra a humanidade
A evolução dos direitos humanos até os séculos XX e XXI não deixou de se espelhar nesses ideais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Organização das Nações Unidas, 1948), outro marco jurídico importante dos direitos humanos, é o maior exemplo de como esses ideais não envelheceram e continuaram sendo de enorme importância para poder dar uma nova direção para uma sociedade que, naquela época, estava saindo de duas grandes guerras mundiais. Essas guerras são exemplos muito fortes de catástrofes humanas. Por esse motivo, nesse momento, as sociedades europeias se colocaram a difícil, mas necessária, tarefa de lidar com os crimes contra a humanidade que não poderiam se repetir, como aqueles perpetrados pelo nazismo.
Foi justamente nesse imediato pós-guerra, em 1945, que houve a operacionalização da punição do crime contra a humanidade, a partir de princípios do direito internacional. O Tribunal de Nuremberg foi uma iniciativa que transformou os ideais de defesa dos direitos humanos em uma prática judicial, com o importante papel de também produzir memória para evitar que momentos tenebrosos da história – que viraram as costas para os direitos humanos – se repitam. Os principais representantes do regime nazista foram julgados nesse Tribunal pelos crimes de guerra, sobretudo pelo extermínio de mais de seis milhões de judeus, além de opositores ao regime, homossexuais e ciganos, dentre outros grupos sociais. Colocava-se, nessa ocasião, o dever de reconhecer e punir as atrocidades que causam grande sofrimento e atingem a integridade física e/ou mental de indivíduos ou grupos sociais (Conti; Alves, 2019).
Nessa ocasião foi afirmado um princípio de justiça global, que colocava a primazia do direito internacional em relação ao nacional como instrumento de defesa dos direitos humanos para coibir práticas consideradas intoleráveis porque atentam à humanidade. Na atualidade, a Corte Penal Internacional ([s. d.]) é o principal órgão responsável por punir crimes contra a humanidade e por denunciar práticas hediondas. É variado o quadro de violação de direitos humanos de indivíduos ou grupos sociais por motivo político, econômico, religioso ou racial, compreendendo assassinato, escravidão, deportação, tortura, prisão abusiva, abuso sexual, perseguição em massa, desaparecimento de pessoas, apartheid, genocídio, crime de guerra, prostituição forçada e esterilização forçada, dentre outros crimes.
Essa forma violenta de tratar grupos sociais específicos da nossa população, antes os “selvagens” e hoje os mais pobres e os negros, não pertence apenas ao passado. Por exemplo, atualmente a mídia tem um papel muito importante em difundir a ideia de que “bandido tem que morrer”. Em nenhum momento se esclarece, no entanto, quem é esse bandido, qual é a sua história de vida, de qual sistema de violência (do Estado e da sociedade) ele também foi vítima, que tratamento ele recebe na prisão. Da mesma forma, em nenhum momento se discute como sociedades que já foram marcadas pela violência e caminham para resolver de forma humanizada o problema da criminalidade atacam suas causas, ou seja, como lidam com as desigualdades sociais, o acesso ao trabalho digno, à moradia e à educação, o respeito aos direitos humanos, enfim, o direito à vida.
Violações no Brasil: escravidão e ditadura
Lamentavelmente nossa memória latino-americana é atravessada por crimes contra a humanidade. Como não poderíamos citar o tráfico de escravos e a escravidão, que foram perpetuados por séculos no Brasil para sustentar nossa economia agrário-exportadora? O historiador Clóvis Moura (2014) mostra muito bem as barbáries perpetuadas contra os negros, que eram justificadas pela ideia de que esses não eram “homens”, não pertenciam à “humanidade”, portanto não podiam nem mesmo ser tratados como súditos, apenas como animais. Segundo Abdias Nascimento (1978), o genocídio contra os negros é permanente e ocorre de forma velada no Brasil. As estatísticas que tratam de jovens negros que são assassinados e encarcerados no Brasil comprovam que esse autor continua tendo toda razão.
A segunda metade do século XX é igualmente repleta de crimes contra a humanidade no nosso continente. Os regimes ditatoriais que se disseminaram em vários países, como Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, são exemplos de crimes contra a humanidade, pela prática da tortura de dissidentes políticos, assassinatos, estupros de mulheres, prisões em massa, desaparecimento de corpos, perseguições. Essas práticas no Brasil produziram muitos mortos e desaparecidos, porém, não receberam um julgamento que ateste e reconheça essas atrocidades até hoje (Conti; Alves, 2019).
Sabemos que, nesse período, o Brasil também expulsou muitas pessoas que resistiam e lutavam contra essas práticas, em defesa dos direitos humanos e da democracia, sobretudo da liberdade de expressão, valor que, como já mencionado, havia sido reconhecido muitos séculos atrás. São décadas nas quais o Brasil produziu muitos refugiados, jovens, estudantes, professores, intelectuais, artistas, escritores e músicos. A liberdade, a imaginação, a criação, a crítica e a participação cidadã na política não eram toleradas pelo regime.
Uma crítica muito pertinente ao nosso país refere-se à incapacidade, ou à falta de vontade política, de trabalhar com essa longa história de desrespeito aos direitos humanos. Essa crítica não vale apenas para o nosso passado remoto – da sociedade colonial, que não foi devidamente discutido e ensinado criticamente para a população –, mas também vale para o nosso passado recente do regime ditatorial.
A iniciativa da Comissão Nacional da Verdade, que foi referendada pela Lei nº 12.528 (Brasil, 2011), merece destaque como uma exceção a essa regra. A Comissão foi recentemente implementada para agir nessa lacuna e representa uma conquista de pesquisadores, professores, movimentos sociais e de pessoas – sobretudo de vítimas e/ou familiares/conhecidos de mortos, perseguidos, torturados na ditadura – comprometidas com a produção da memória por meio do exame e do esclarecimento das graves violações aos direitos humanos cometidas no período da ditadura (1964–1988). Um relatório final foi produzido por essa Comissão, no qual é possível analisar os limites e os desafios dessa iniciativa, sobretudo o de comunicar os seus resultados para a população em geral e poder efetivar políticas públicas para a conscientização dessa memória (Pereira, 2016).
Ao contrário, países como Uruguai, Chile e Argentina trabalharam de forma muito mais eficiente com essa memória que trata da ditadura para explicar para a sua população o que significam os crimes contra a humanidade cometidos durante esses regimes. Nesse último país, por exemplo, há uma iniciativa que se sobressai nesse sentido. Você já ouviu falar das “Mães da Praça de Maio”? São várias mulheres que tiveram seus filhos desaparecidos durante a ditadura argentina e que marcham semanalmente em frente à Casa Rosada (sede do governo federal Argentino, em Buenos Aires) com lenços brancos em suas cabeças, simbolizando as fraldas de seus bebês, para protestar contra a ditadura e reivindicar a memória dessa atrocidade que matou seus filhos e muitos outros jovens, a fim de que isso não se repita mais (Conti; Alves, 2019).
No Chile, a ditadura comandada pelo general Pinochet foi a mais mortífera da América do Sul. Na capital, Santiago, há o Museu dos Direitos Humanos, onde é possível encontrar uma sistematização muito didática e acessível a toda a população com as práticas do terror durante esse período e as memórias de suas vítimas. Lá podemos encontrar milhares de fotos, cartas a parentes e desenhos de crianças, que nos ensinam muito a respeito do sofrimento humano e do sacrifício de vidas acionado, sem escrúpulos, naquele período.
Atualmente há uma “nova” base social da imigração, principalmente proveniente de países do Sul Global, que pertencem a culturas e têm línguas e histórias quase completamente desconhecidas no Brasil, além de diferentes fés religiosas, como é caso dos haitianos, senegaleses, sírios e palestinos, dentre outras nacionalidades. A cidade de São Paulo é um laboratório vivo das organizações desse grupo social em defesa de seus direitos. A comunidade boliviana, por exemplo, tem se destacado em diferentes iniciativas nesse sentido.
Por fim, é importante não nos esquecermos de que a questão da desigualdade e da diferença e sua relação com a democracia está sendo transformada também pela presença, no Brasil e no mundo, de imigrantes e refugiados de diversas nacionalidades. Essa imigração do século XXI nos obriga a pensar na ampliação do sentido da cidadania.
Vamos Exercitar?
A situação-problema coloca a questão das diferenças, da concepção e da violação dos direitos humanos: o Brasil já foi e ainda é um país receptor de refugiados. No passado, recebeu europeus que fugiam das duas grandes guerras e, nas últimas décadas, recebe refugiados de diferentes nacionalidades. O refugiado é protegido por tratados internacionais como a Convenção de Genebra (1951), a Declaração de Cartagena (1984) e os princípios dos direitos humanos e, no Brasil, pela Lei Nacional de Refúgio nº 9474 (Brasil, 1997) e pela Constituição Federal (Brasil, 1988).
Muitos estudos acadêmicos comprovam que o Brasil já foi um produtor de refugiados, expulsou inúmeras pessoas que resistiam e lutavam contra o governo militar e em defesa dos direitos humanos e da democracia, sobretudo da liberdade de expressão, valor reconhecido há muitos séculos. Elas eram sobretudo jovens, estudantes, professores, intelectuais, artistas, escritores e músicos. A liberdade, a imaginação, a criação, a crítica e a participação cidadã na política, quando vistos pelo regime como “ameaças”, não eram tolerados. Apesar de o Brasil não oferecer, como outros países o fizeram, instrumentos para que a população entenda mais concretamente essa fotografia do horror na nossa história – e a necessidade de que ela não se repita –, há muitos relatos, filmes, livros e músicas que nos ensinam essa questão.
Embora não possamos defender que as “luzes da razão” podem resolver todos os problemas da humanidade, sobretudo da emancipação humana, é válido retomar os princípios que motivaram o Iluminismo. Esses valores são fundamentais como parâmetro para pensarmos a vida coletiva, e continuam válidos e atuais para evitarmos que nossas sociedades caminhem em direção ao obscurantismo da razão. A negação desses valores e a interdição antidemocrática da participação cidadã são sinais de um retrocesso que remonta a séculos atrás (Conti; Alves, 2019).
O acolhimento dos “novos” refugiados passa pelo reconhecimento da sua condição humana e também da necessidade de proteção dos valores democráticos na nossa sociedade para que nosso país não se transforme, novamente, em um país produtor de refugiados em massa. Ou seja, a defesa de um refugiado de ser acolhido está totalmente conectada com a defesa de que os próprios brasileiros tenham seus direitos respeitados, não precisando fugir para outros países.
A nossa Constituição Federal (Brasil, 1988) é guardiã desses valores bem como os tratados internacionais firmados. Há, portanto, legitimidade jurídica para o pleito de proteção para todos os cidadãos brasileiros e não nacionais que tenham ameaçada a sua liberdade de expressão, de fé religiosa, de posicionamento político e de escolha de identidade sexual, dentre outros casos.
Saiba Mais
Aprofundar conhecimentos
Hanashiro (2001) oferece um histórico e um panorama completo do desenvolvimento do sistema de proteção aos direitos humanos nas Américas, que encontrou sua condensação na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (ambas de 1951) e na Convenção Americana de Direitos (1978). Em 1969, esses direitos passaram a ser operacionalizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, mais tarde, em 1979, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
HANASHIRO, O. S. M. P. O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2001. p. 35-25.
A cultura da impunidade e a ditadura
Na palestra indicada a seguir, entre os minutos 9 e 18 o historiador José Alves de Freitas Neto expõe os efeitos da “não condenação das mazelas do regime militar” no período de transição democrática. O historiador explica “a impunidade que se perpetua”, tanto em relação aos graves crimes contra a humanidade cometidos nesse período – como a tortura, assassinatos em massa, entre outros – quanto também os prejuízos aos cofres públicos. A “interdição de falar das mazelas do regime ditatorial” e o “esquecimento e silenciamento” impostos estão diretamente ligados à falsa ideia de que regimes militares e autoritários estão isentos de corrupção.
FOI para isto que lutamos pela liberdade? José Alves de Freitas Neto. Diretor: Mário Mazzilli. Produção: Instituto CPFL. [S. l.]: Instituto CPFL, 2017. 1 vídeo (48min05s).
Referências Bibliográficas
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DA FRANÇA. Declaração de direitos do Homem e do Cidadão. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos – USP. França, 1789. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4247260/mod_resource/content/1/declaracao%20direitos%20humanos.pdf. Acesso em: 27 out. 2023.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 27 out. 2023.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm. Acesso em: 27 out. 2023.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm. Acesso em: 27 out. 2023.
COMITÊ NACIONAL PARA OS REFUGIADOS (CONARE). Refúgio em números. 3. ed. Brasília: CNJ, 2018. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/04/refugio-em-numeros_1104.pdf. Acesso em: 27 out. 2023.
CONTI, H. M. de; ALVES, P. V. M. Sociedade Brasileira e Cidadania. Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2019.
CORTE PENAL INTERNACIONAL. Página inicial. Corte Penal Internacional, [s. d.]. Disponível em: https://www.icc-cpi.int. Acesso em: 27 out. 2023.
FOI para isto que lutamos pela liberdade? José Alves de Freitas Neto. Diretor: Mário Mazzilli. Produção: Instituto CPFL. [S. l.]: Instituto CPFL, 2017. 1 vídeo (48min05s).
FOUCAULT, M. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994.
HANASHIRO, O. S. M. P. O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2001. p. 35-25.
KANT, E. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. Traduzido por Artur Morão. [S. l.]: Lusosofiapress, 1784. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_ideia_de_uma_historia_universal.pdf. Acesso em: 27 out. 2023.
MORAES, A. L. Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2016.
MOURA, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014.
NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. ONU, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 27 out. 2023.
PEREIRA, B. F. Comissão nacional da verdade: limites e desafios. Dissertação (Mestrado) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas, Universidade Federal de São Paulo, 2016.
Aula 3
O Reconhecimento das Diferenças e as Desigualdades
O reconhecimento das diferenças e as desigualdades
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Ponto de Partida
Olá, estudante! Você já parou para pensar em quais são os grupos sociais do Brasil que mais sofrem com as barreiras no acesso à cidadania, e quais são essas barreiras – visíveis, mas também muitas vezes invisíveis – por eles enfrentadas para a atuação política, ou seja, para a representação e a reinvindicação de seus direitos?
Desejamos boas-vindas a você em mais uma oportunidade de reflexão. Para discutirmos essas questões no contexto nacional, tentaremos entender alguns problemas do funcionamento das sociedades atualmente, em particular o aumento das desigualdades e sua relação intrínseca com a culpabilização e a exclusão dos grupos sociais marginalizados denominados “diferença” pelas ciências sociais. No mundo inteiro, mas no Brasil em particular, essa lógica tem crescido, apesar de também existirem contratendências guiadas pela defesa dos direitos fundamentais e dos direitos humanos e por políticas de inclusão e de reconhecimento das diferenças.
No Brasil, a análise das diferenças deve abranger as raízes históricas, que colocaram negros, indígenas e outras populações marginalizadas na posição da “diferença” e de mais atingidos pelas desigualdades. Como sabemos, essa questão social se reproduziu nos períodos históricos posteriores.
Por que será que as mulheres pertencentes a esses grupos sociais são as mais atingidas pelos fatores de discriminação, de desigualdade e de exclusão da participação política? Na sua opinião, como seria o Brasil atualmente sem a luta por reconhecimento – no passado e no presente – empreendida por esses grupos sociais? As desigualdades sociais estariam mais equilibradas sem a reivindicação desses grupos? No que se refere à democracia, você acha que a luta por reconhecimento interfere positiva ou negativamente na forma de funcionamento do nosso regime democrático?
Nesta aula, tentaremos entender de que modo essas diferenças ainda atuam na contemporaneidade, seja na forma de lógicas de exclusão e de incidência das desigualdades, seja na forma de luta por reconhecimento, como força contrária à atuação dessas lógicas (Conti; Alves, 2019). Esperamos que esta aula, ao discutir os direitos fundamentais em sua relação com a democracia, a cidadania e o reconhecimento das diferenças, possa também iluminar esse caminho.
Vamos Começar!
Igualdade universal e direito à diferença
Iniciaremos nosso percurso didático pelo tratamento da relação entre democracia e direitos fundamentais. Na contemporaneidade, essa relação está prevista no que se chamou de quarta geração dos direitos fundamentais que, segundo o jurista Paulo Bonavides (2004), surgiu no final do século XX, no bojo da globalização e das décadas neoliberais, após um “processo cumulativo e qualitativo” de formação das primeiras gerações dos direitos fundamentais (Bonavides, 2004, p. 563). O autor nos oferece uma síntese acerca da história dos direitos fundamentais, lembrando-nos do fator que os distingue: os direitos fundamentais são aqueles previstos na Constituição (Brasil, 1988) – têm, portanto, garantia constitucional – e são essencialmente voltados a “criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana” (Bonavides, 2004, p. 560).
Como esclarece Bonavides (2004), a primeira geração dos direitos fundamentais surgiu durante a Revolução Francesa (1789) para afirmar os direitos individuais, sobretudo os direitos civis e políticos. A segunda geração se manifestou particularmente nas Constituições do pós-Segunda Guerra Mundial, inclusive na brasileira (de forma um pouco tardia), com o fim de exigir a implementação pelo Estado de políticas concretas para se efetivar os direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos. Dessa segunda geração deriva o dever, do Estado e da sociedade, de garantir o básico para se prover uma vida digna a todos os cidadãos, ou seja, o direito do acesso universal à saúde, à educação, a trabalho e moradia dignos, dentre outros. Todavia, percebeu-se também, no final do século XX, a importância da terceira geração dos direitos fundamentais, que proclama garantias universais para o gênero humano, como a paz entre os povos, a preservação do meio ambiente, a comunicação livre e não submetida a monopólios e, por fim, a proteção de locais que, pela sua importância cultural e artística, são patrimônio comum da humanidade.
Mas estejamos atentos. Bonavides (2004) também nos faz um alerta de que esse desenho geracional dos direitos fundamentais, previstos na nossa Constituição de 1988 (Brasil, 1988) e de enorme importância para a nossa sociedade, não é suficiente para a efetivação desses direitos na realidade. Essa discussão foi colocada particularmente na década de 1990, justamente o período no qual os sintomas socioeconômicos maléficos das políticas de abertura dos países à globalização e de redução dos gastos públicos – a partir do princípio neoliberal do Estado mínimo – passam a se manifestar mais explicitamente em âmbito global, com particular intensidade nas sociedades dos países mais pobres, que são chamados, atualmente, de Sul Global.
Nesse contexto, percebeu-se que a não efetivação dos direitos fundamentais guarda uma estreita relação com a forma de exercício de poder na maioria dos países, ou seja, em âmbito global, que nega a efetiva participação da maioria dos cidadãos nas decisões políticas que lhes afetam diretamente. Diversos mecanismos servem a essa situação, desde a negação do acesso à renda, trabalho, educação, saúde, transporte e moradia, até as tecnologias utilizadas para manipular a informação. É por esse motivo que nasce a quarta geração dos direitos fundamentais, centrada na “ação de controle” do poder político ao clamar pela participação consciente e corretamente informada, não apenas pelo mero exercício do direito de voto, mas também pela presença nos diferentes espaços políticos nos quais são discutidas e decididas questões de interesse comum. O pluralismo de opiniões, de crenças, de culturas, de etnias e de visões de mundo é um requisito para que esse espaço democrático possa existir.
Segundo Bonavides (2004), essa quarta geração reflete a necessidade da construção de uma “globalização política” na qual os direitos fundamentais não estejam separados do modo de funcionamento das democracias e sejam colocados como uma prioridade diante de todos os outros fatores de funcionamento das sociedades, inclusive o econômico.
Dessa forma, o autor destaca o fato de que a relação dos direitos fundamentais com o exercício da cidadania – pensada de forma articulada globalmente, para além da esfera nacional – e com a democracia é umbilical. Sem um regime político que permita a participação cidadã democrática, não é possível se falar em garantia dos direitos fundamentais. É por esse motivo que a nossa Constituição de 1988 (Brasil, 1988) – a Carta Maior, que está acima de todas as outras legislações do país –, além de estabelecer os direitos fundamentais, também resguarda a democracia e a cidadania. A Constituição de 1988 se contrapõe frontalmente ao sistema político das duas décadas anteriores à sua instituição – o regime militar – que interditou o exercício da cidadania, ou seja, a participação no poder político pela população. Essa garantia da cidadania pela Constituição é uma condição intrínseca dos direitos fundamentais e não podemos nos esquecer disso.
Siga em Frente...
Barreiras da desigualdade e exclusão
Isso não nos exime, no entanto, de fazer uma crítica a mudanças reais que devem ocorrer nas sociedades para que os direitos fundamentais, a democracia e a cidadania não se tornem apenas palavras vazias. Sem dúvida alguma, quanto mais os direitos fundamentais são desrespeitados e/ou ignorados, mais haverá uma assimetria no funcionamento do poder político. Essa perspectiva é extremamente importante para a compreensão dos problemas vividos pelas sociedades na contemporaneidade.
A questão da distribuição de renda está no coração dessa discussão. Nos últimos anos, os dados do economista francês Thomas Piketty (2014) fizeram muito barulho por deixarem evidente que a tendência à concentração de renda não é uma anomalia dos países do Sul Global. Os Estados Unidos, centro do sistema econômico mundial, seguem criando desigualdades e pobreza. Nesse país, a renda recebida pelos 10% mais ricos, nos anos 1970, era cerca de 35% da renda total. A partir de então só foi aumentando, e hoje estima-se que os 10% mais ricos recebam 48% da renda total.
Trata-se, na verdade, de uma tendência global. O relatório do Comitê de Oxford de Combate à Fome (OXFAM, 2018), divulgado no início de 2018, mostra que 1% das pessoas mais ricas do mundo concentraram 82% da riqueza gerada em 2017.
Esse estado de fato da divisão de renda no mundo torna muito atuais as análises de Charles Wright Mills (1916-1962), que nos anos 1950 escreveu um clássico da sociologia, A elite do poder (Mills, 1975), em que analisa a relação estreita entre economia e política para explicar a mudança na estrutura de classes dos Estados Unidos e sua imbricação com a dominação de uma elite econômica, política e militar nesse país. Essa análise foi atualizada por Robert Frank (2007), ao analisar a evolução dessa estrutura social no século XXI, apontando para uma ainda maior concentração de renda, de super-ricos que vivem com uma renda tão alta, muitas vezes equivalente ao produto interno bruto de um país, ao passo que a maioria da população sofre a pressão do empobrecimento, sobretudo após a eclosão da crise mundial em 2007/2008.
As ciências sociais problematizam, na verdade, como essas desigualdades de distribuição de renda e riqueza têm cor (não brancos) e sexo (feminino), combinando-se também com outros fatores, como escolaridade, qualificação, idade, nacionalidade, opção e identidade sexual. A perspectiva da transubstancialidade (Crenshaw, 2002), que articula as dimensões de classe, gênero e etnia a fim de olhar para essas desigualdades, tem sido muito útil para evidenciar essas particularidades. Ou seja, os recortes de classe, gênero e etnia sozinhos são abstratos e pouco nos falam de nossa realidade social, mas a literatura das ciências sociais se esforça em transformá-los em objeto de estudo/análise de modo articulado com essas outras dimensões (como escolaridade, qualificação, idade, nacionalidade, identidade de gênero, orientação afetivo-sexual), para que assim evidenciem e revelem as particularidades de como a desigualdade se apresenta concretamente na nossa realidade material.
Habermas e o reconhecimento intersubjetivo
No mesmo sentido vem a opinião do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. A sua teoria do reconhecimento levanta a questão de que uma democracia não garante por si só a justiça social e o respeito pelas diferenças culturais. O debate que trata do reconhecimento está presente de forma não marginal na vasta produção intelectual do filósofo.
Aqui, importa percebermos o que essa teoria ilumina, ou seja, que uma democracia efetiva não negligencia o problema do que chama “minorias ‘inatas’”, tampouco aquele que surge “quando uma cultura majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias a sua forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos” (Habermas, 2004, p. 170). A igualdade formal de direitos, prevista no regime republicano com base no princípio universalista, não exclui, segundo o autor, a necessidade do reconhecimento das diferenças pelas políticas de inclusão.
Habermas situa os direitos fundamentais na esfera do “reconhecimento intersubjetivo”, ou seja, como “direitos que os cidadãos devem reconhecer mutuamente” (Habermas, 2004, p. 237). O autor ressalta a importância da ação de movimentos sociais – por exemplo, grupos feministas, minorias de imigrantes e refugiados, povos originários de regiões que foram submetidas ao sistema de colonização, pessoas com deficiência, homossexuais – para que possa ocorrer uma “articulação e afirmação de identidades coletivas” em prol da efetivação do Estado de direito por uma “via democrática” (Habermas, 2004, p. 237 e 245).
O “reconhecimento intersubjetivo” confere, assim, legitimidade à “luta social contra a opressão de grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social”, assumindo que “as injustas condições sociais de vida na sociedade capitalista devem ser compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos” (Habermas, 2004, p. 238).
Para finalizarmos, será interessante revisitar um texto do autor escrito nos anos 1990, no qual é levantada a questão da imigração e do refúgio na Europa. Habermas (1997) advertiu que essa questão ocuparia um lugar central nessas sociedades no futuro. Sua análise também se mostra acertada ao advertir que o aumento da presença de imigrantes e refugiados acompanharia o que ele chamou de “chauvinismo do bem-estar” (Conti; Alves, 2019).
Como Habermas (1997) explica, o respeito pela democracia e pelos direitos fundamentais na atual configuração das sociedades só pode ocorrer no quadro de uma “sociedade mundial” formada por “cidadãos do mundo”. Assim, nessa “sociedade mundial” as diferenças são reconhecidas dentro de um quadro no qual “a cidadania em nível nacional e a cidadania em nível mundial formam um continuum” (Habermas, 1997, p. 305).
Vamos Exercitar?
Retomemos a reflexão a respeito das formas de luta contra as desigualdades e contra o estigma da “diferença” dos grupos sociais que, em geral, mais encontraram – e ainda encontram – barreiras no Brasil para o reconhecimento e para o pleno exercício da cidadania.
Como sabemos, os indígenas, nossos povos originários, desde o período colonial foram considerados a “diferença” em relação aos padrões de cultura, língua, poder político e modelo econômico que foram impostos como hegemônicos pelo Estado Colonial. A imagem de que esses povos são “selvagens”, “incivilizados”, “atrasados” e “ingênuos” para atuar politicamente na representação de seus direitos – devendo, portanto, “assimilar” a cultura e os modos de vida considerados “mais avançados” –, desde então serviu (e ainda serve) de arma ideológica para negar seus direitos e excluí-los da participação política.
Mas a imagem de que os indígenas são “incapazes”, para, por exemplo, atuar na política, não corresponde à realidade. Sabemos que esses povos são organizados politicamente para a defesa de seus direitos e a preservação de suas terras e da biodiversidade nelas presente, muitas vezes até de forma articulada internacionalmente. Os movimentos indígenas colocam em discussão como a nossa identidade nacional não reconhece a sua diversidade e, por meio de diferentes formas de luta concreta, tentam combater a injustiça social pela defesa do direito às suas terras e à preservação de suas culturas.
Da mesma forma, a “diferença” construída em relação às culturas e civilizações dos povos africanos, que foram trazidos para o Brasil de maneira forçada para trabalhar nas plantações na condição de escravos – não de cidadãos –, ainda tem um papel determinante na legitimação das desigualdades das quais os negros são vítimas. A historiografia mostra como a luta para combater a escravidão foi transversal à presença dos africanos no Brasil e assumiu diferentes formas ao longo da história, inclusive por meio da religião e da conhecida capoeira. O Movimento Negro continuou desempenhando, após a abolição (1888) e no século XX, um papel de enorme relevância para lutar contra a atuação do racismo, das desigualdades e das injustiças.
Também não podemos deixar de pensar na luta dos trabalhadores para melhorar suas condições de renda/salário e de trabalho, com importante papel para agir nas desigualdades sociais no país. Os imigrantes europeus atuaram, também por meio dos sindicatos, para organizar e empreender essas lutas no meio rural, mas sobretudo no urbano, na indústria. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi aprovada em 1943 também como resposta a essas manifestações. Sabemos que as lutas do trabalho hoje não são tão ativas como no passado, por diversos motivos. Mas é importante perceber que o trabalho se depara na contemporaneidade com diversas pressões e desafios, em particular devido a formas flexíveis de contratação, informalidade, trabalho intermitente e desemprego que acompanham novas modalidades de organização e de reivindicação de direitos. É evidente que essas lutas na esfera do trabalho continuam tendo uma função importantíssima para agir nas desigualdades. Vale ressaltar que as mulheres também têm um papel ativo em todas essas lutas, já que elas são as mais atingidas pelos trabalhos mais precarizados e desvalorizados.
Também por esse motivo as suas lutas não são apenas legítimas, mas atuam como fatores importantíssimos para a garantia do funcionamento do regime democrático no Brasil. O país ainda tem muito o que avançar para a efetiva inclusão e o reconhecimento desses grupos sociais (Conti; Alves, 2019).
Saiba Mais
Aprofundar conhecimentos e exemplificar
O seguinte trecho, de autoria do jurista Bonavides, coloca em evidência a relação entre direitos fundamentais da quarta geração e a atuação política em nível global para garantia da democracia:
Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. Só assim aufere humanização e legitimidade um conceito que, doutro modo, qual vem acontecendo de último, poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir.
A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase da institucionalização do Estado social. São direitos da quarta geração o direito à democracia, à informação e o direito ao pluralismo (Bonavides, 2004, p. 571).
Qualificar a democracia
O pronunciamento de Luiz Felipe de Alencastro no Supremo Tribunal Federal, em prol das políticas de cotas, mostra que o funcionamento da democracia no Brasil passa pelo reconhecimento desse direito fundamental para grupos mais atingidos pelas desigualdades:
[…] agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afro-brasileiros, hoje majoritários no seio da população, consolidará a democracia. Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica, como o caso em boa medida dos memoráveis julgamentos dessa corte [Supremo Tribunal Federal] sobre a demarcação de terras indígenas. No presente julgamento trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia (Alencastro, 2017, p. 112-113).
Definição
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, chauvinismo quer dizer:
1 patriotismo fanático, agressivo 1.1 p. ext. entusiasmo excessivo pelo que é nacional, e menosprezo sistemático pelo que é estrangeiro 1.2 p. ext. entusiasmo intransigente por uma causa, atitude ou grupo”. A etimologia, origem dessa palavra, vem de “Chauvin, nome de um soldado francês que exaltava ingenuamente as armas do primeiro Império, tipo popularizado e ridicularizado por seu extremado patriotismo.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 450.
Diferenças e desigualdades
Por que defendemos a existência das diferenças entre os indivíduos e criticamos a permanência das desigualdades em nossa sociedade? Afinal, deve haver diferenças entre homens e mulheres em nossa sociedade? E desigualdades entre homens e mulheres? Assista à aula Conceitos de igualdade, diferença e desigualdade (00:00 – 04:04), disponibilizada pela Univesp TV, e reflita sobre tais questionamentos.
Sociologia da Educação – Aula 6 – Conceitos de igualdade, diferença e desigualdade. Univesp, 2015.
Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, L. F. Conferência: políticas afirmativas, democracia e conhecimento do Brasil. In: NETO, J. C. H; FERREIRA, A. N. Fórum inclusão e diversidade. Belo Horizonte: Instituto Casa da Educação Física, 2017.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 27 out. 2023.
CONTI, H. M. de; ALVES, P. V. M. Sociedade Brasileira e Cidadania. Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2019.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, v. 1, n. 10, p. 171-188, 2002.
FRANK, R. A journey through the American Wealth Boom and lives of new rich. New York: River Press, 2007.
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
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MILLS, C. A elite do poder. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
OXFAM. Terrenos da desigualdade: terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural. [S. l.]: Oxfam Brasil, nov. 2016. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacao/terrenos-da-desigualdade-terra-agricultura-e-desigualdade-no-brasil-rural/. Acesso em: 27 out. 2023.
OXFAM. A distância que nos une: relatório anual da Oxfam – Brasil. [S. l.]: Oxfam Brasil, 2017. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/a-distancia-que-nos-une/. Acesso em: 27 out. 2023.
OXFAM. Recompensem o trabalho, não a riqueza. [S. l.]: Oxfam Internacional, jan. 2018. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacao/recompensem-o-trabalho-nao-a-riqueza/. Acesso em: 27 out. 2023.
UNIVESP. Sociologia da Educação – Aula 6 – Conceitos de igualdade, diferença e desigualdade. YouTube, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5uPeVxcDpvQ. Acesso em: 2 fev. 2024.
Aula 4
Globalizações e Deslocamentos no País
Globalizações e deslocamentos no país
Estudante, esta videoaula foi preparada especialmente para você. Nela, você irá aprender conteúdos importantes para a sua formação profissional. Vamos assisti-la? Bons estudos!
Ponto de Partida
Olá, estudante! Desejamos boas-vindas a você em mais uma unidade de estudo de cidadania global. Veremos como o contexto globalizado dos dias atuais, que tem suas economias, suas sociedades e suas culturas interligadas globalmente, coloca uma dimensão mais complexa para pensarmos o exercício da cidadania. A nova realidade do número cada vez maior de pessoas deslocadas coloca desafios para pensarmos a cidadania, sobretudo para desvincularmos o seu sentido da esfera restrita ao nacional (Conti; Alves, 2019).
Nesse cenário, como avaliar a “evolução” da cidadania diante do cemitério de corpos de refugiados que se transformou o Mar Mediterrâneo – cenário emblemático dos barcos lotados de homens, mulheres, crianças e até bebês buscando desesperadamente uma esperança de vida? Das manifestações de racismo e xenofobia, enfim, da negação e da exclusão da cidadania para as milhões de pessoas deslocadas interna e internacionalmente? Diante da medida tomada pelo governo de Donald Trump, nos Estados Unidos (EUA), para separar mais de mil crianças, filhas de imigrantes indocumentados, dos seus pais?
Ao mesmo tempo, na América do Sul (incluindo o Brasil), milhões de venezuelanos estão também cruzando fronteiras em busca de uma nova vida. Essas pessoas se deparam com demonstrações de solidariedade, mas também com violência e desrespeito. Trata-se de um problema complexo, atual e diretamente ligado à questão da cidadania, que requer reflexão e debates.
Diante dos diversos fluxos migratórios do exterior para o Brasil – causados em grande medida por guerras, conflitos políticos e miséria – como poderíamos receber e acolher os povos imigrantes e refugiados, garantindo sua integridade física e moral, seus valores e culturas sem projetar no estrangeiro o inimigo, o alvo e a causa dos problemas existentes no nosso país? A fama do Brasil, de país acolhedor para os estrangeiros, tem se confirmado diante do cenário crítico de que estamos tratando?
Vamos Começar!
Cidadania transnacional
Depois de percorrer diferentes contextos e épocas históricas que nos ajudam a refletir a respeito da complexidade implicada na discussão do tema da cidadania, não poderíamos deixar de tratar de uma dimensão que se torna cada vez mais evidente no contexto globalizado do século XXI: a cidadania transnacional. Até este momento, conseguimos refletir acerca da dimensão local, expressa no sentir-se membro de um corpo político no espaço das cidades e do estado-nação. Agora, daremos um passo à frente na compreensão do sentido da cidadania para além da dimensão local. Há diferentes perspectivas para explorar esse aspecto da cidadania (Conti; Alves, 2019).
Se considerarmos, por exemplo, a associação da ideia cidadania com o sentido universal da condição humana, entendemos que, já no século XVIII, havia movimentos culturais, como o Iluminismo, que defendiam a dimensão cosmopolita da cidadania, ou seja, para além da fronteira nacional. Isso é bastante curioso, pois, naquela época, o grau de integração econômica, política e cultural entre os estados-nação era incomparável com o dos dias atuais. No entanto, a conscientização da esfera internacional como um espaço necessário para a efetivação dos direitos de cidadania, para além do espaço nacional, já era colocada pelos pensadores iluministas.
A necessidade dessa conscientização do transnacional é ainda mais urgente na atualidade. Com a integração das economias, das finanças e das culturas e com o aumento no volume dos deslocamentos populacionais em escala global, muitos autores têm mostrado como o espaço do nacional fica ainda mais recortado por um mosaico de nacionalidades, culturas, religiões e etnias. É, por isso, uma contradição que essas pessoas sejam excluídas do exercício de seu direito de cidadania e de participação política.
Aprofundemos a problematização com alguns dados: segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR, 2018), a cada minuto 20 pessoas são forçadas a se deslocar. Em 2018, essa agência estimou a existência de 68,5 milhões de pessoas nessa condição no mundo, das quais cerca de 40 milhões são deslocados internos, 25,4 milhões são refugiados (mais da metade com menos de 18 anos de idade) e 3 milhões são solicitantes de refúgio. Os desastres ecológicos ganham importância para explicar esses deslocamentos, no presente e no futuro. Até 2050, estima-se que 250 milhões de pessoas serão deslocadas devido a causas ambientais – é como se mais do que a população inteira do Brasil fosse deslocada. Além dos refugiados, é também importante levar em conta o quadro dos demais imigrantes (pessoas que moram fora do país de origem), estimado pela Organização Internacional para Migrações (OIM) em 244 milhões em 2015. As sociedades contemporâneas estão passando por uma grande transformação populacional devido a esses deslocamentos. Justamente por esse motivo, as migrações internacionais se transformaram em uma questão central para entendermos diversos aspectos do funcionamento das sociedades, como o mercado de trabalho, a educação, a cultura, a identidade e particularmente a cidadania (Conti; Alves, 2019).
Você deve ter acompanhado as notícias do caso de crianças, filhas de imigrantes indocumentados, que foram separadas de seus pais por uma medida do governo de Donald Trump feita para desencorajar essas pessoas de irem para os Estados Unidos. Também vemos frequentemente em jornais as fotos de barcos no mar Mediterrâneo (entre a África e a Europa), lotados de homens, mulheres, crianças e até bebês, que fogem dos fatores de expulsão em seus países na busca por uma nova esperança de vida, porém, ao chegarem nos países europeus, encontram muitas barreiras para poderem desembarcar. Essas notícias evidenciam como as fronteiras dos Estados mais ricos do mundo tendem a ser predominantemente fechadas para esses imigrantes e refugiados, apesar de muitos desses países serem signatários de Tratados Internacionais que protegem a condição de imigrante, refugiado. Como explica o sociólogo italiano Pietro Basso, os Estados tendem a adotar um posicionamento restritivo, quando não criminalizante (dado o suposto crime de atravessar fronteiras), em relação a esse grupo social.
As declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e de governantes como Viktor Orban (Hungria) e Matteo Savini (Itália), exemplificam a construção de um discurso que associa automaticamente essa população ao “crime”, estabelecendo um clima de insegurança e medo que tem efeitos práticos concretos de desrespeito aos direitos humanos dessas populações também nos países para os quais elas emigram (ou tentam emigrar).
Do ponto de vista das pessoas que se deslocam internacionalmente, o direito de cidadania não pode se restringir às fronteiras nacionais. Da mesma forma que determinadas instituições exercem uma dimensão global do exercício do poder político – como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) –, com decisões que impactam o destino de muitas nações, o aumento da existência de imigrantes e refugiados coloca em questão por que a cidadania deve permanecer restrita à nacionalidade.
Saskia Sassen – especialista em globalização e processos transnacionais, conhecida pelo conceito de “cidade global” – oferece uma rica reflexão a esse respeito. A autora se pergunta se o aumento de imigrantes e refugiados nos Estados é sinal de que as fronteiras nacionais tendem a desaparecer e se as formas de dupla/tripla cidadania denotam uma tendência para se pensar esse tema.
Importa percebermos que essa reflexão nos traz a dimensão transnacional da cidadania como uma esfera de discussão de enorme importância. Já que vivemos em um mundo globalizado, a cidadania não pode mais ser analisada puramente a partir do nacional. Utilizar esse “nacionalismo metodológico” significa negar a cidadania a milhões de pessoas que residem em outros países ou que são obrigadas a deixar seus países de origem. Lembremos que, do ponto de vista cosmopolita, essa visão redutiva da cidadania necessariamente nega a condição humana dessas pessoas. Sobretudo, é necessário perceber que o exercício da cidadania, em particular com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação, assume atualmente uma dimensão global. Esse alcance espacial traz consigo inúmeras potencialidades para pensarmos o significado da ação cidadã (Conti; Alves, 2019).
Siga em Frente...
Deslocamentos forçados
As sociedades europeias no momento histórico dos anos 1990 ainda não sofriam com os perversos efeitos da crise mundial eclodida em 2007/2008, pois, segundo Habermas, ainda viviam no estado de graça (em relação a outras partes do mundo) de poder desfrutar de um “bem-estar”. O momento agora mudou. Por esse motivo, essa mesma Europa vive atualmente inúmeros conflitos sociais o causados pelos efeitos da crise mundial e acabam se condensado na tendência de exacerbação do nacionalismo como uma forma de resolver os problemas que supostamente vêm “de fora”, do estrangeiro, e pela presença do estrangeiro. São esses momentos de crise que, como esclarece o autor, “trazem à tona a tensão latente entre cidadania e identidade nacional” (Habermas, 1997, p. 298). Esse debate é de enorme relevância e devemos estar atentos a ele
[…] os sujeitos privados do direito não poderão sequer desfrutar das mesmas liberdades subjetivas enquanto não chegarem ao exercício conjunto de sua autonomia como cidadãos do Estado, a ter clareza quanto aos interesses e parâmetros autorizados, e enquanto não chegarem a um acordo acerca das visões relevantes segundo as quais se deve tratar como igual o que for igual e desigual o que for desigual. Quando tomarmos a sério essa concatenação interna entre o Estado de direito e a democracia, porém, ficará claro que o sistema dos direitos não fecha os olhos nem para as condições de vida sociais desiguais, nem muito menos para as diferenças culturais (HABERMAS, 2004, p. 242-243).
Hoje também o continente europeu é um dos principais destinos de imigrantes e refugiados expulsos de seus países. Sabemos que, ali, os efeitos da crise mundial eclodida em 2007/2008 acirram conflitos já existentes e criam outros. De fato, os imigrantes e refugiados passam a ocupar o lugar da “diferença” nessas sociedades, e muitas vezes são identificados como o “bode expiatório” de todos os problemas existentes – desemprego, criminalidade, terrorismo e dificuldade de acesso a serviços públicos, por exemplo. Essa tendência está estreitamente relacionada com a reprodução e o reforço de desigualdades, das quais esses grupos são as principais vítimas, como o acesso a um emprego mais valorizado e protegido, à educação e a serviços de educação e saúde.
No atual cenário mundial de deslocamentos em massa, o imigrante defronta-se com inúmeras barreiras à cidadania e pressões. Segundo Basso (2010), as políticas dos Estados são pautadas essencialmente na ideia da “convivência forçada” e do “choque de civilizações”, que alimentam um quadro geral de “agudização” de racismo, xenofobia, discriminação, violência policial e exposição à exploração, na vida cotidiana e no trabalho, desse grupo social.
No atual contexto de crise e de ascensão de partidos nacionalistas, essa ideia é constantemente mobilizada, fazendo com que a tendência das políticas imigratórias seja a de restringir e selecionar a circulação de pessoas. No entanto, isso não significa que essas fronteiras realmente podem se fechar para o trabalho imigrante no atual grau de internacionalização das economias e das sociedades. Por exemplo, a economia dos Estados Unidos pararia se todos os imigrantes tivessem de deixar aquele país. Além disso, esses imigrantes são sujeitos humanos, estão ali contribuindo com o seu trabalho, com suas culturas e línguas para o funcionamento e a construção daquela sociedade.
Imigrantes e refugiados no Brasil
Embora o Brasil ainda tenha uma porcentagem muito baixa de estrangeiros, estimada entre 1% e 1,5% da população, não está separado desse contexto internacional. As notícias que falam da presença desses imigrantes e refugiados no país têm se tornado cada vez mais comuns. Tivemos dois casos, dos haitianos e dos venezuelanos, que deram mais visibilidade a essa questão nos últimos anos. A pergunta que questiona se Estado brasileiro tende a se abrir ou a se fechar para o reconhecimento da cidadania desses imigrantes e refugiados não pode ser respondida sem primeiramente levarmos em consideração o contexto internacional.
Se analisamos o contexto nacional, entendemos que apesar de o Brasil ter uma sociedade formada por imigrantes (africanos, europeus, asiáticos etc.) e ter se apoiado secularmente no trabalho dessas pessoas, atualmente coloca muitas barreiras para o reconhecimento da cidadania dos “novos” imigrantes e refugiados. Essas barreiras são de ordem formal, relativas à concessão de visto e ao reconhecimento de refúgio e da cidadania brasileira. O processo para conseguir a documentação é excessivamente burocratizado e caro para os imigrantes. Muitas vezes, isso acaba provocando a indocumentação de muitos deles, o que, na prática, significa a exclusão da cidadania, ou seja, o não reconhecimento desses imigrantes como sujeito de direitos. Para a concessão da cidadania brasileira, esse processo é ainda mais burocratizado e de difícil acesso (Conti; Alves, 2019).
Se refletimos a respeito do aspecto substancial dessa cidadania, podemos entender que esses imigrantes e refugiados vivem os fatores de expulsão na própria sociedade de origem, por isso são obrigados a migrar, e ao chegarem no Brasil se defrontam novamente com muitas barreiras da cidadania – como o acesso a um trabalho digno, à moradia, à educação de qualidade –, que se colocam também para os brasileiros.
A lógica de exclusão dos estrangeiros, como vimos, acompanha a história da cidadania. No entanto, essa lógica tende a se tornar mais agressiva nos momentos de crise e de ascensão de políticas mais autoritárias. Além dos problemas formais com a lei, os imigrantes e refugiados precisam lidar com uma sociedade nem sempre amistosa. Como sabemos, uma parte da população brasileira pode enxergar os imigrantes como seus rivais na busca pelos direitos de um cidadão. Mas a questão central é entendermos que a negação da cidadania para esses sujeitos não é o meio eficaz para se conseguir a efetivação desses direitos para os brasileiros. Essa ideia tem sido instrumentalizada pelos Estados, sobretudo pelos que são governados por partidos nacionalistas. Todavia, de forma alguma essa exclusão implica que os direitos dos nacionais estejam sendo de fato protegidos e respeitados.
Vamos Exercitar?
Diante do cenário mundial que buscamos analisar ao longo da aula e do histórico da cidadania e dos direitos humanos que percorremos, como responder às questões colocadas inicialmente? Quais caminhos as políticas internacionais devem tomar diante das grandes crises de refugiados? O Brasil, país considerado hospitaleiro e com uma população cordial e pacífica, tem sido capaz de receber e acolher os povos imigrantes e refugiados, garantindo sua dignidade?
Além de a reconhecermos, temos de lembrar que a cidadania, hoje, no mundo globalizado, é uma cidadania transnacional, que não se limita ao território do estado-nação. Essa perspectiva significa proteger também os brasileiros e seus direitos, mas, antes, reconhecer a dignidade e as garantias legais de todo ser humano. Importante reconhecer que não é por meio da anulação da Constituição Federal de 1988 que vamos resolver a questão da desigualdade e da exclusão social dos cidadãos, pois, como vimos, a abolição de direitos consagrados não é a solução para as demandas que ainda não foram efetivadas (Conti; Alves, 2019).
Em outras palavras, o fato de que nem todos os indivíduos conseguem usufruir de uma cidadania plena não será resolvido com a supressão de todas as conquistas institucionais, mas sim por meio do fortalecimento democrático que possa fomentar mais participação política e responsabilidade do Estado no enfrentamento da questão social.
Ademais, à medida que o Brasil se tornar uma nação capaz de respaldar a situação dos imigrantes, a população em geral também usufrui do convívio em uma sociedade mais justa e organizada sob a equalização de direitos.
Saiba Mais
Exemplificando
A cidade de São Paulo é um laboratório vivo para entendermos o sentido da cidadania transnacional. Em um passado relativamente recente, essa cidade era sobretudo formada por imigrantes europeus. Atualmente São Paulo é considerada uma “cidade global”, por ser destino de moradia para bolivianos, haitianos, senegaleses, sírios e moçambicanos, dentre um leque muito diversificado de nacionalidades do mundo inteiro. Ali, você pode ter contato com muitas iniciativas e organizações dos imigrantes e refugiados que, mesmo não tendo direito de voto no Brasil, reivindicam seus direitos e espaços para expressar suas culturas e identidades.
Aprofundando conhecimentos
A obra de Ludmila Andrzejewski Culpi, Estudos migratórios (2020), disponível em sua biblioteca virtual, fornece um importante panorama da questão migratória em diversos aspectos, trabalhando conceitos fundamentais para essa discussão, políticas migratórias e bases teóricas em sociologia, economia e relações internacionais. Discute a história das migrações, examinando alguns momentos históricos, a influência da Organização das Nações Unidas e criação da Organização Internacional de Migrações. A obra também destaca a legislação brasileira e sua evolução, e a importância de se pensar nos refugiados.
CULPI, Ludmila Andrzejewsi. Estudos migratórios. Curitiba: Contentus, 2020. 71p.
E a posição da ONU no reconhecimento dos direitos humanos?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU, 1948), após um preâmbulo muito importante por explicitar os princípios norteadores dos direitos humanos, determina em seus primeiros artigos:
Artigo I
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo II
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Artigo VI
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (ONU, 1948, p. 4-6)
Xenófobo no Brasil?
Sugerimos a leitura da reportagem a seguir, que trata da composição étnica e racial da população europeia, e reflita se faz sentido, do ponto de vista da formação histórica da população nacional, um brasi¬leiro se declarar xenófobo.
A Europa sempre foi povoada por diversas etnias, ao contrário do que pensam supremacistas brancos.
AZEVEDO, G. Crise faz crescer o risco de o Brasil voltar ao Mapa da Fome, diz ONU. UOL, São Paulo, 17 out. 2018.
Referências Bibliográficas
AGÊNCIA DA ONU PARA REFUGIADOS (ACNUR). Página inicial. ACNUR, [s. d.]. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/. Acesso em: 27 out. 2023.
AZEVEDO, G. Crise faz crescer o risco de o Brasil voltar ao Mapa da Fome, diz ONU. UOL, São Paulo, 17 out. 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/10/17/jose-graziano-fao-onu-mapa-da-fome-brasil-obesidade.htm. Acesso em: 27 out. 2023.
BASSO, P. L’ascesa del razzismo nella crisi globale. In: BASSO, P. (org.). Razzismo di stato: Stati Uniti, Europa, Italia. Milano: FrancoAngeli, 2010.
CONTI, H. M. de; ALVES, P. V. M. Sociedade Brasileira e Cidadania. Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2019.
CULPI, L. A. Estudos migratórios. Curitiba: Contentus, 2020. 71p.
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
HABERMAS, J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. ONU, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 27 out. 2023.
Encerramento da Unidade
Cidadania e Direitos humanos
Videoaula de Encerramento
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Ponto de Chegada
Olá, estudante! Para desenvolver a competência desta unidade, que é reconhecer os direitos humanos conquistados e distinguir como eles vigoram na sociedade brasileira contemporânea atrelados ao exercício cidadão, você deverá compreender primeiramente o significado dos conceitos de cidadania e direitos humanos.
Com o intuito de fornecer elementos fundamentais para o estudo desse assunto, expomos o significado da cidadania, pensada a partir de três dimensões: local, nacional e global. Toda vez que uma dessas dimensões da vida em sociedade é comprometida negativamente, necessariamente as outras também encontram mais obstáculos para a sua plena realização. O desafio é assimilar de que forma, hoje, as sociedades estão (ou não) considerando a reflexão a respeito das questões implicadas nessas noções e quais são as consequências disso.
É fundamental reconhecer também os direitos humanos e como essa instituição apareceu na história moderna, tornando-se um padrão de referência universal para se pensar a vida em sociedade, com seus limites e as fronteiras cada vez maiores na sociedade atual, tendo em vista a predominância de outras lógicas – como o poder, a segurança, o nacionalismo, a riqueza – que se colocam acima do ser humano.
Os casos de genocídio são os exemplos mais gritantes de barreiras à cidadania global e crime contra a humanidade. Em geral, esse crime é associado ao extermínio dos judeus durante o nazismo. No entanto, é importante lembrarmos que esse fenômeno é muito mais amplo. Sobretudo, muito antes da barbárie do nazismo ocorrida no contexto europeu, a prática do extermínio em massa já tinha precedentes com a atuação dos sistemas coloniais na América Latina, África e Ásia (Bruneteau, 2006).
Com relação à América Latina, o autor David Stannard (1993) chamou de “holocausto americano” a dizimação da população indígena, na América do Sul e do Norte, pelas armas dos colonizadores europeus e pelas doenças biológicas que traziam. Muitos outros autores utilizam-se das estimativas populacionais do período anterior à colonização (1500), comparando-as com as primeiras décadas desse mesmo século, para iluminar o rápido e brutal decréscimo da população indígena do continente, que nada mais é do que um verdadeiro genocídio.
O historiador Enzo Traverso, em seu livro La violenza nazista: uma genealogia (2002), mostrou que a conquista do “espaço vital” baseado no critério racial – ocupação de novos territórios para a “raça” “pura” alemã – já tinha sido amplamente utilizada pelos sistemas coloniais modernos nas colônias e é um dos fatores que explica a genealogia do nazismo, ou seja, os processos que estão em sua origem histórica no que se refere às práticas genocidas e violentas.
Você já parou para pensar, por exemplo, na relação dos estremecimentos dos valores democráticos – espelhados nos novos cenários políticos em ascensão no atual contexto de crise mundial –, com o desrespeito dos direitos fundamentais? Refletir a respeito desse percurso formativo encoraja a despertar o cidadão que há em você, buscando o conhecimento crítico e científico.
Outro exemplo concreto que pode ser mobilizado para a compreensão desse quadro no Brasil é que o grupo social dos negros é o mais atingido pelas desigualdades, consequentemente, encontra uma série de barreiras à cidadania. No que se refere à renda, essa desigualdade é explícita: brancos ganham, em média, o dobro que negros (Oxfam, 2017), ocupando postos de trabalho mais bem remunerados e de maior prestígio e poder. Essa desigualdade de renda se desdobra em desvantagens no acesso à educação, à saúde e ao poder político, dentre outros fatores. Ela atinge igualmente as mulheres e outros grupos sociais marginalizados, os indígenas, os migrantes internos e os imigrantes internacionais de perfil socioeconômico vulnerável.
Muitos movimentos sociais representantes desses grupos dentre outras reivindicações, apoiam-se na defesa de políticas afirmativas a fim de contrastar os efeitos das desigualdades para grupos sociais particulares e alcançar níveis de cidadania plena e efetivação dos direitos humanos. No Brasil, esses movimentos ganham destaque atualmente com a luta antirracista e pelas cotas nas universidades públicas, bem como pelas manifestações de mulheres para a defesa de seus direitos.
Souza, Ribeiro e Carvalhaes (2010) oferecem um estudo completo das desigualdades de acesso à educação para os negros no Brasil. Apesar de progressos conquistados pelo esforço desses indivíduos e de suas organizações coletivas, os autores apontam “um abismo” que ainda persiste no Brasil se considerado o acesso e a permanência, de brancos e negros, no ensino superior. A educação é considerada pelos autores como um fator determinante para agir nessa desigualdade. De fato, embora o Brasil tenha sido um dos principais destinos do maior movimento de migração forçada da história, o tráfico negreiro, sendo que mais da metade da sua população se identifica como afrodescendente, apenas 25% desse contingente tem ensino superior completo, segundo dados do Censo (2010).
A defesa das políticas afirmativas responde à necessidade de agir nas desigualdades reproduzidas nas sociedades. Como ressalta Silva (2017), “a ação afirmativa não é concessão, ação afirmativa é garantia de direitos” (Silva, 2017, p. 15) – sobretudo, lembremo-nos, de direitos fundamentais. Essas políticas têm como alvo diferenças internas historicamente construídas – negros, indígenas, migrantes internos – e as “novas diferenças” que provêm dos movimentos imigratórios para o Brasil na contemporaneidade. Para que essa população não seja excluída, é igualmente urgente que políticas de inclusão sejam aplicadas, a exemplo da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (Brasil), que promove o direito de refugiados ingressarem ou continuarem seus estudos no ensino superior.
Para combater esses estereótipos e preconceitos, são iluminadoras as palavras de Luiz Felipe de Alencastro, historiador de nacionalidade brasileira, que foi um refugiado em Paris (França) durante a ditadura militar no Brasil. Graças ao reconhecimento de sua cultura pela reputada Universidade La Sorbonne de Paris, Alencastro pôde ensinar a história das Américas nessa universidade. Como explica o historiador, a sociedade brasileira como um todo ganha com as políticas afirmativas. Que sociedade, que democracia pode existir se grupos majoritários como os negros, ou mesmo minoritários como os imigrantes e refugiados, forem excluídos do acesso aos direitos fundamentais?
Os movimentos feministas também tiveram um papel histórico igualmente importante no mundo e também no Brasil, para entendermos as formas de combater as desigualdades e a luta pelo reconhecimento. O direito de voto foi uma das primeiras bandeiras reivindicadas por esse movimento nos séculos XIX e XX. Atualmente a questão feminina se revela em diferentes reivindicações, desde a luta pela igualdade salarial, maior participação nos postos com mais prestígio e poder, até o direito ao aborto.
No que se refere aos dados de concentração de renda, no Brasil a situação é ainda mais alarmante. Desde os anos 1990, muitos autores das diferentes áreas do conhecimento vêm demostrando o impacto da globalização no aprofundamento das desigualdades e da exclusão social – também, portanto, a sua relação com o funcionamento frágil da nossa democracia e de seus caminhos no futuro, caso não se tome consciência a respeito da questão da distribuição de renda e riquezas.
A reportagem de Rossi (2017), referindo-se a dados também fornecidos pela Oxfam, nos ajuda a entrar mais a fundo nesse quadro de desigualdades no Brasil ao evidenciar que “seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população”, ou seja, um pouco mais de cem milhões de pessoas, e os “5% mais ricos [da população brasileira] detêm a mesma fatia de renda que os demais 95%”! Segundo dados da Oxfam (2017), 165 milhões de brasileiros vivem com uma renda per capita inferior a dois salários-mínimos (Conti; Alves, 2019).
Um indicador importante para entendermos esse quadro de desigualdade de renda no Brasil diz respeito à estrutura fundiária, que revela números igualmente brutais apresentados pelo Censo Agropecuário (2006): 0,91% dos estabelecimentos rurais (latifúndios) concentram 52% da área total das propriedades rurais. Os estabelecimentos com dez hectares de terra, representando 47% do total dos estabelecimentos do país, ocupam apenas 2,3% da área total (Oxfam, 2016).
Essa desigualdade de distribuição de terras mantém estreita relação com a situação precária da vida urbana, sobretudo das grandes metrópoles. Raquel Rolnik (2016) recupera dados que tratam da proliferação de assentamentos e moradias informais nas periferias das grandes cidades do mundo e do Brasil, explicando os mecanismos de produção de sem-tetos e da segregação urbana pelo que chama de “guerra dos lugares” contemporânea. Estimou-se que, no Brasil (2018), 6,9 milhões de famílias não têm uma casa para morar, ao passo que há 6 milhões de imóveis desocupados (Odilla; Passarinho; Barrucho, 2018).
É claro que esse quadro socioeconômico reflete questões estruturais, sobretudo as antigas, as novas e as diferentes faces das desigualdades, que foram agravadas de forma drástica pelo contexto de crise econômica e política do Brasil, e pelo aumento do desemprego e do trabalho terceirizado e/ou intermitente. Autores como Florestan Fernandes (1973) analisaram as conexões dessa estrutura econômica das periferias do capitalismo com a reprodução de um regime político autoritário. Seus estudos mostram bem como o traço colonial de opressão política e exclusão da participação cidadã da maioria da população permanece existindo mesmo depois de o Brasil se constituir como um Estado–nação com sua “própria” burguesia nacional, ficando particularmente mais evidentes em contextos de interrupção do regime democrático como no Estado Novo (1930-1945) e na ditadura militar (1964-1985) (Conti; Alves, 2019).
Devemos refletir a respeito da democracia, das desigualdades e das diferenças, em um exercício que nos dá instrumentos para a compreensão das barreiras à cidadania, que são muitas vezes invisíveis, mas importantíssimas para pensarmos as possibilidades de atuação política, sobretudo por grupos sociais marginalizados.
É Hora de Praticar!
O tema das migrações é mobilizado neste Estudo de Caso por nos possibilitar discutir questões importantes da cidadania e dos direitos humanos em nossa realidade social. A mobilidade forçada opera na sociedade contemporânea com diversas lógicas de expulsão.
A socióloga Saskia Sassen, no seu livro Expulsões (2016), mostra como a mobilidade forçada de pessoas é hoje um problema que atinge muitos países do mundo, sobretudo os do Sul Global, países da periferia do capitalismo ou subdesenvolvidos. A autora discute o que chama de “lógicas de expulsão” – algumas antigas, outras novas – que estão ativas na contemporaneidade provocando o deslocamento forçado de massas de pessoas.
Resta-nos entender como o Brasil se situa nessa questão. O que você responderia se lhe perguntassem acerca da relação do funcionamento da democracia no Brasil com a efetividade dos direitos humanos? Na sua opinião, podemos dizer que as gerações dos direitos fundamentais são respeitadas no país?
Reflita
- Qual foi o panorama social da humanidade que deu ensejo ao desenvolvimento dos direitos humanos?
- Por que e para quem os direitos humanos se aplicam?
- Qual seria o caminho para que a cidadania pudesse ser usufruída de modo pleno por toda a população brasileira na realidade material, superando as múltiplas barreiras existentes?
Resolução do estudo de caso
O quadro dessas expulsões é complexo e abrange desde a questão do aumento das desigualdades e do desemprego no mundo, a crise e o endividamento das economias dos países, até o aumento da violência e de conflitos, a destruição da natureza, a expansão das fronteiras agrícolas, a desertificação de regiões e o alagamento de outras. Fato é que há uma quantidade cada vez maior de países que parece estar sofrendo com essas lógicas de expulsões sistêmicas.
Essa perspectiva ajuda a compreender por que o Brasil atualmente ocupa tanto um lugar de país de emigração como de imigração. Por um lado, temos problemas muito vivos no contexto atual, como os altos índices de desemprego, o aumento das desigualdades e da violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância às diferenças, o avanço das fronteiras agrícolas, ou seja, fatores que podem provocar o deslocamento de população dentro do espaço interno, nacional, e para fora do país. Por outro lado, o Brasil recebe muitos imigrantes e refugiados de países como Haiti, Venezuela, Colômbia, Síria e Angola, entre outros, o que é uma consequência e um sintoma da atuação dessas lógicas de expulsão em outras regiões do mundo.
No atual contexto globalizado, a situação de pessoas deslocadas interna e internacionalmente é emblemática para pensarmos as fronteiras, os desafios e as novas potencialidades da cidadania e dos direitos humanos. Há muitas dimensões desses deslocamentos que podem ser objeto de investigação. A questão central é como os deslocamentos forçados refletem tendências de funcionamento da cidadania e dos direitos humanos no Brasil e no mundo.
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Referências
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