Os tipos de conhecimentos e suas especificidades

Aula 1

O senso comum

O senso comum

Olá, estudante! Nesta videoaula, você conhecerá um tipo de conhecimento: o senso comum e suas especificidades, além de como a mitologia se tornou expressão do senso comum, sua importância e aplicabilidade.  

Este conteúdo nos ensinará a respeitar e valorizar todos os tipos de conhecimento, por isso a sua importância.

Vamos lá!

Ponto de Partida

Que tal fazermos um mergulho nas imensas profundezas das nossas convicções e certezas? Que tal tentarmos conhecer melhor o que está na raiz dos nossos projetos, sonhos e realizações? Damos as boas-vindas a quem estiver disposto a nos acompanhar nas reflexões que esta disciplina propõe, lembrando que o intuito é ajudar você a conhecer mais o modo como o nosso pensamento foi sendo plasmado ao longo da nossa história. Vamos lhe apresentar os diversos tipos de conhecimento, os principais momentos da Filosofia, algumas das principais correntes filosóficas que a compõem e as principais preocupações dos pensadores desde a Grécia antiga até hoje. 

Não devemos nos esquecer que Descartes já nos alertava que viver sem filosofar é como ter os olhos fechados sem jamais fazer esforço para abri-los; e o prazer de ver todas as coisas que nossa vista descobre não é comparável à satisfação que dá o conhecimento daquelas que se encontram pela filosofia; e seu estudo é mais necessário para regular nossos costumes e nos conduzir na vida que o uso dos nossos olhos para guiar nossos passos (Descartes, 1997, p. 16).  

Há quem viva na superfície da vida, sem jamais descer às suas profundezas, como nos lembrou Schopenhauer (2020, p. 17) ao afirmar que: “quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência”, ou seja, nós não a compreendemos e nem sequer percebemos que não a compreendemos. Carl Jung, menos radical que Schopenhauer, defende não se tratar de falta de inteligência, mas, sim, de consciência, pois, para ele: “noventa e cinco por cento das pessoas passa noventa e cinco por cento das suas vidas de modo inconsciente” (Jung, [s. d.] apud One, 2005, min. 38).

Agora é com você! Queremos que você analise a seguinte frase de Sócrates e se posicione criticamente, com toda a profundidade possível: “Uma vida sem reflexão não merece ser vivida!” (Pessanha, 1999, p. 67).

Então, vamos nos aprofundar nisso e mergulhar fundo nessa reflexão? Prepare-se! 

Vamos Começar!

Não se aprofundar no uso da racionalidade, não tentar entender a vida de modo mais profundo e passar a vida inteira acreditando nas coisas como elas diretamente se apresentam, sem mediações, são práticas consideradas de senso comum, que é o discernimento do qual todos comungam, sem necessidade de estudos, de modo espontâneo e intuitivo. Os mitos foram uma das primeiras expressões do senso comum, mas deram uma importante contribuição para o desenvolvimento do uso da razão. O senso comum, ao contrário do que pode parecer, não é um conhecimento de segunda categoria ou de menor importância, pois todas as modalidades de conhecimento são importantes dentro do seu contexto e, como tal, devem ser respeitadas.

Especificidades do senso comum

O senso comum é a primeira modalidade de conhecimento e, talvez, tão antigo quanto a humanidade. Trata-se da primeira forma de compreensão do mundo; nele, faz-se presente a racionalização, utilizada para dar sentido às coisas do grupo, da cultura ou da sociedade em que nos encontramos (Souza, 1998).

O senso comum, normalmente, é transmitido pela tradição, pela oralidade e pelos costumes, por vezes, até de modo inconsciente. Para alguns, o senso comum é tão espontâneo que é considerado natural; é como se não pudesse ser diferente, ou seja, como se fosse a forma de conhecimento original, a “expressão para designar as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que todos os homens acreditam ou devem acreditar” (Abbagnano, 2007, p. 873).

O senso comum tem como características (Chauí, 2000):

  • A subjetividade, que é a maneira como cada um vê e interpreta o mundo e os eventos em si. Trata-se das opiniões, muitas vezes, aceitas sem questionamento.
  • A espontaneidade, pois o senso comum não resulta de nenhuma modalidade muito elaborada, mas surge a partir daquilo que se observa, normalmente, a partir dos sentidos.
  • A imediaticidade, já que no senso comum não existe nada que faça a mediação; essa apropriação é direta, tal qual os sentidos captam.
  • A superficialidade, pois ele não aprofunda ou problematiza a reflexão abordada, ficando apenas na superfície, sem a preocupação com a sua fundamentação.
  • A acriticidade: a palavra crítica tem o sentido de filtragem e purificação, mas o senso comum não filtra seus conceitos, não havendo crítica (o prefixo “a”, no grego, é não ou sem).

A mitologia como expressão do senso comum

A primeira manifestação do senso comum foi o mito (mytheo, em grego, é narrativa, relato), uma narrativa fantasiosa, porém amparada em uma preocupação válida para explicar a realidade. Segundo o Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, “além da acepção geral de ‘narrativa’ [...] é possível distinguir três significados do termo: 1º Mito como forma atenuada de intelectualidade; 2º Mito como forma autônoma de pensamento ou de vida; 3º Mito como instrumento de estudo social” (2003, p. 673).

Essa última acepção diz respeito ao período em que o mito começou a ser a questionando, abrindo precedentes para o uso da razão, pois os mitos não surgiram se autoconcebendo como forma atenuada de intelectualidade, mas como a melhor resposta possível para o entendimento dos eventos da natureza naquele momento. Com o passar dos anos, aos poucos, foram aparecendo, dentro dos mitos, elementos de racionalidade, como os questionamentos, ao se tentar entender, por exemplo, a atitude dos deuses diante de certos acontecimentos.

Os mitos surgiram para tentar explicar a origem de tudo o que existe, desde o mundo físico até os acontecimentos. Os antigos ficavam espantados (essa atitude é chamada de thaumazein) diante da grandeza do universo e do modo perfeito como as coisas aconteciam, pois lhes parecia que toda a natureza (physis, em grego) estava previamente configurada para seguir uma ordem (kosmos, em grego). O mito, então, podia ser compreendido como uma mistura de religião e razão: recorria-se aos deuses para explicar algo verificável e concreto.

Siga em Frente...

Importância e aplicabilidade do senso comum

Todas as modalidades de conhecimento são importantes, pois, conforme o momento da vida em que nos encontramos, umas nos atendem melhor do que outras, semelhante aos nossos gostos musicais, quando, a depender do lugar em que nos encontramos, da nossa faixa etária ou do nosso estado emocional, um determinado tipo de música nos agrada mais.

Podemos afirmar que aqueles que se guiam pelo senso comum tendem a acreditar que o mundo só pode ser do modo como é apreendido por eles, mas se analisarmos friamente o caso, parece que aqueles que se guiam pelo conhecimento religioso ou científico fazem o mesmo, bem como se consideraram, muitas vezes, superiores e em melhores condições de oferecer respostas satisfatórias ao mundo. Porém, ainda que isso ocorra, ainda não é o suficiente para definir uma forma de pensamento como superior a outra.

Existe uma anedota que relata o caso de um barqueiro analfabeto e que pode ilustrar o que pretendemos abordar. A anedota do barqueiro (ou da canoa, por vezes atribuída a Paulo Freire) apresenta o caso de um homem que nasceu e cresceu em um determinado lugar do interior e acabou não tendo acesso à escola. Entre outras coisas práticas, ele aprendeu a nadar e a remar, adquiriu um barquinho e, assim, desempenhava o seu ofício fazendo a travessia das pessoas de uma margem a outra de um rio. Um dia, quando foi transportar um advogado e uma professora, durante a travessia, os passageiros lhe deixaram claro que ele havia perdido grande parte de sua vida por não ter adquirido conhecimentos acadêmicos, técnicos, profissionalizantes etc.; mas quando o barco começou a afundar, percebendo que nenhum dos passageiros sabia nadar, o barqueiro lamentou o fato e informou a eles que não haviam perdido apenas
grande parte de suas vidas, mas a vida toda. Ou seja, naquele momento, naquela situação, os diplomas e os títulos não ajudaram em nada, o conhecimento mais importante era oriundo do senso comum, como saber nadar, e o barqueiro era o único que sabia. 

Vamos Exercitar?

Acreditamos que você já esteja em condições de se posicionar criticamente, isto é, com critérios, diante da frase de Sócrates exposta anteriormente: “Uma vida sem reflexão não merece ser vivida!” (Pessanha, 1999, p. 67). Uma análise crítica ocorre quando você não tira tudo da sua cabeça, mas se vale daquilo que nomes consagrados lhe outorgaram, por isso, esperamos que você tenha percebido que pensadores como Descartes e Schopenhauer concordaram com a frase socrática e, de certa forma, a reproduziram com suas próprias palavras.

Além disso, extrapolar a área da Filosofia e buscar contribuições até mesmo no campo da Psicologia, recorrendo às contribuições do psicólogo alemão Carl Jung, mostra-nos que o despertar da consciência é muito difícil e que poucos, apenas cinco por cento, conseguem a façanha de estar mais de cinco por cento conscientes, e esses são aqueles que conseguem ver coisas que as pessoas comuns não veem e, por não verem, não acreditam existir. Talvez seja por isso que Platão (2001) dizia que educar não é mostrar o mundo, mas ensinar a ver o mundo.

Podemos concluir, então, que viver sem reflexão é viver sem compreender o sentido, o motivo de se estar aqui e não fazer nenhum esforço nessa direção; é viver como os outros animais: o momento, a satisfação dos instintos, das necessidades e dos desejos, sem buscar ser artífice da própria existência. Se a vida perde o seu sentido ou não o enxergamos, podemos cair num vazio existencial, e isso é muito perigoso, corroborando a passagem bíblica que diz: “De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma” (Mc: 8,36), ou seja, de que adianta termos tudo se perdemos o sentido de viver? 

Saiba Mais

Conheça mais as especificidades do senso comum lendo o artigo Senso comum e trabalho intelectual. Trata-se de uma resenha do livro de Renato ORTIZ. Mundialização: saberes e crenças. São Paulo, Brasiliense, 2006.

Enriqueça os seus conhecimentos sobre a mitologia como expressão do senso comum lendo o capítulo 1 – Metodologia Grega: Preliminares, do livro Mitologia Grega. Nele, o autor mostra como o mito se reveste de uma forma de conhecer e se posicionar no mundo a partir do senso comum.

Aprofunde a sua compreensão acerca da importância e da aplicabilidade do senso comum lendo o artigo Diálogo Entre os Saberes: as Relações entre o Senso Comum, Saber Popular, Científico e Escolar, de Eneida Orbage Taquary. Publicado pela Universitas Relações Internacionais. Nele, a autora aborda a importância dos diversos tipos de conhecimento e como eles dialogam entre si em prol de uma complementariedade cognitiva. 

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Tradução: A. Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. São Paulo: Vozes, 2009. 

CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

DESCARTES, R. Princípios da filosofia. Tradução: J. Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.

ONE: The movie. Direção: Ward Powers. Washington. Intérpretes: Scott Carter, Mantak Chia, Deepak Chopra et al. Roteiro: Jenna Stone. USA: Dreamland Films, 2005. 1 DVD (80 min), son., color., 35 mm.

PESSANHA, J. A. M. Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

PLATÃO. A república. Tradução: M. H. R. Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria de vida. São Paulo: LeBooks Editora, 2020.

SOUZA, J. C. A. de. A configuração estrutural do paradigma da racionalidade moderna. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 82, p. 391-401, 1998.

Aula 2

O conhecimento religioso

O conhecimento religioso

Olá, estudante! Nesta videoaula, você conhecerá um tipo de conhecimento: o conhecimento religioso e suas especificidades, bem como a relevância da presença do Divino na Religião e o diálogo entre religião e filosofia em torno do Divino.  

Este conteúdo nos ensinará a respeitar e valorizar todos os tipos de conhecimento, por isso a sua importância.

Vamos lá!

Ponto de Partida

Embora possa parecer que Deus e religião sejam assuntos exclusivos da Teologia, outras áreas também se dedicam a entender melhor essas questões, como a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia — cada uma sob um determinado aspecto.

A religião transmite uma forma específica de conhecimento, haja vista que o conhecimento é definido como uma forma de se compreender e explicar o mundo, e esse é um projeto que também envolve a religião; além disso, cada modalidade de conhecimento (senso comum/mitologia, filosofia, religião e ciência) prevaleceu em determinada época, passando pelas idades antiga, medieval e moderna/contemporânea.

Assim como acontece com o senso comum, o conhecimento religioso também tem as suas especificidades, e é isso que apresentaremos a partir de agora, refletindo sobre o modo como o Divino se faz presente na religião e como se dá o diálogo entre filosofia e religião acerca dessa temática. Aliás, também devemos ter em mente que, como já dissemos anteriormente, nenhuma forma de conhecimento deve ser considerada melhor, mais completa e mais importante que outra; há quem passe por este mundo recorrendo sempre a modalidade religiosa de conhecimento e, por vezes, com pleno êxito.

Propomos, então, que você reflita sobre o conhecimento religioso buscando elementos que te permitam entender adequadamente a frase de William Shakespeare (2005, p. 36): “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.

E aí? Está pronto para mais uma viagem pelas esplêndidas estradas do conhecimento? Esperamos que sim e que, ao final de mais esta aula, você possa afirmar: “Aumentei o meu conhecimento e a minha compreensão de mundo!”. 

Vamos Começar!

Não é raro ouvirmos falar sobre o Deus de Platão, o Deus de Aristóteles, o Deus de Spinoza e assim por diante, e isso pode nos levar à seguinte indagação: existe mais de um Deus? Possivelmente não. Se Deus existe, ele é um só, e vale lembrarmos que o Sol também é um só, aliás, é esse o significado do seu nome, e nos referimos a ele de diversas formas: o sol da manhã, o sol da tarde, o sol do inverno etc.

Diante disso, podemos perceber que Deus pode – e é – tratado sob diversas perspectivas e por diversos pensadores, ou seja, ele não é objeto exclusivo da religião. Algumas pessoas (talvez a maioria) chegaram a Deus pela fé, mas há, também, aquelas que chegaram a ele pelo raciocínio. Os religiosos gostam de nos lembrar que chegamos a Deus pelo amor ou pela dor, mas, segundo alguns filósofos, não necessariamente.

Especificidades do conhecimento religioso

A religião é uma atividade típica do homem e de nenhum outro animal; ela se faz presente em todas as culturas e, praticamente, em todas as épocas, mas se trata de uma atividade marcadamente problemática, pois “enquanto todas as outras atividades humanas (embora sejam problemáticas) refiram-se a objetos cuja existência está fora de discussão, a atividade religiosa, ao contrário, dirige-se a um objeto do qual até a sua existência é colocada em questão” (Mondin, 1980, p. 79).

O conhecimento religioso tem como especificidade (Chauí, 2000):

  • Basear-se na fé.
  • Aceitar a existência de um ser Divino, superior, perfeito, onisciente, onipresente e onipotente.
  • Ter como certa a existência de uma realidade imanente e outra transcendente, sendo a primeira transitória e passageira, enquanto a segunda é eterna, imutável, perfeita e bela.
  • Acreditar na vida pós-morte e numa possibilidade de salvação da alma com base em nossos próprios méritos.
  • Ter esperança de que os bons e justos sejam recompensados e os maus castigados.
  • Estabelecer uma ritualística.
  • Ver dicotomia entre o sagrado e o profano, entre a natureza e o divino.

Siga em Frente...

A presença do Divino na religião

Platão e Aristóteles não conheceram a Bíblia, tampouco o cristianismo, pois ele nem sequer existia, mas foram teístas a partir do uso da razão. Contudo, depois que filosofia e teologia se mesclaram, a razão foi substituída pela fé e, por volta do ano 1000 da nossa época, alguns teólogos buscaram mostrar que era possível certificar-se da presença do Divino no mundo também a partir da razão.

Um dos argumentos mais conhecidos é atribuído a Santo Anselmo (1033-1109) e ficou conhecido como argumento ontológico. “Esse argumento tenta estabelecer não só a existência do maior ser concebível, mas também os vários atributos que Deus deve possuir em virtude de ser o maior: onipotente, onisciente, existe por si mesmo etc.” (Law, 2008, p. 261). Resumidamente, o argumento afirma que “por definição, Deus é um ser tão grande que maior não pode ser concebido. Deus pode ser concebido como mera ideia ou como realmente existindo. Existir é maior do que não existir. Portanto, Deus deve existir.” (Law, 2008, p. 140).

Outro argumento bastante conhecido é o de São Tomás de Aquino, conhecido como “as cinco vias racionais da prova da existência de Deus”. São elas (Reale; Antiseri, 2003):

  • A via do movimento: tudo o que se move (nascer, viver e morrer), é movido por outro, logo, é necessário que se chegue ao primeiro motor, àquele que não é movido por nenhum outro: Deus.
  • A via das causas: nada do que existe causou a si próprio, então, deve existir uma causa primeira de tudo o que existe: Deus.
  • A via da contingência: tudo o que existe morre e não tem em si a razão de sua existência, por isso, deve haver um ser que tenha em si a razão de sua existência e do qual todos os outros procederam e procedem: Deus.
  • A via da perfeição: se existem graus de perfeição, é porque existe algo que tem em si a perfeição em plenitude: Deus.
  • A via da ordem: se o cosmo segue uma ordem e uma finalidade, é porque existe uma inteligência que causa essa ordem: Deus.

O diálogo entre religião e filosofia em torno do Divino

Segundo Blaise Pascal (1999), apostar na existência de Deus denota mais inteligência do que apostar em sua não existência. A existência de Deus é proveitosa para a nossa felicidade neste mundo e no outro, caso exista, pois Deus representa o bem, a verdade, o amor, a justiça etc.

Para Pascal, a razão não pode decidir se existe Deus ou não, pois entre nós e Deus há distância infinita; por isso, ele propõe apostarmos cara ou coroa a favor da existência de Deus: se ganharmos, ganharemos tudo, se perdermos, nada perderemos. Seria racional apostar e correr o risco de nos equivocarmos numa aposta em que temos todas as probabilidades de ganhar e nenhuma de perder? E ele conclui: “Apostai, pois, que ele existe, sem hesitação” (Pascal, 1999, p. 93).

Pascal faz uma crítica aos “filósofos que pretendem demonstrar ou descreditar as verdades da fé por meio da razão, que nada tem a ver com ela, do mesmo modo que o espírito de geometria nada tem a ver com o de finura. O Deus dos filósofos não é o Deus da fé: não é Deus” (Pascal 1999, p. 22).

Vamos Exercitar?

No início da aula, propomos que você refletisse sobre o conhecimento religioso buscando elementos que te permitissem entender adequadamente a frase de William Shakespeare (2005, p. 36): “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.

A forte tendência de secularização presente nas ideias iluministas reverbera até hoje em nossa sociedade, por conta disso, temos uma forte tendência a desacreditar de tudo quanto não nos seja compreensível, contudo, ainda temos de admitir que muitas coisas que existem precisam ser descobertas, ou seja, nós não as conhecemos, logo, são um mistério para nós, e a existência ou não de Deus — condição básica do conhecimento religioso — está entre elas.

Portanto, podemos relacionar essa postura diante do conhecimento com a frase de Shakespeare — base norteadora da nossa reflexão — e encerramos corroborando tal convicção com a contribuição de Newton, para quem aquilo que conhecemos é uma gota e o que ignoramos é um oceano.

Saiba Mais

Conheça mais as especificidades do conhecimento religioso lendo o tópico 1. O que é Religião, do Caderno Pedagógico para o Ensino Religioso – Crenças Religiosas e Filosofias de Vida: Com Roteiros de Atividades para o Ensino Fundamental. Nele, Gilbraz de Souza Aragão apresenta um panorama altamente explicativo sobre essa temática.

Para enriquecer a sua compreensão da presença do Divino na religião, sugerimos a leitura do capítulo 1 – Introdução: A Questão de Deus, do livro Religião. Nele, o autor aborda sistematicamente o tratamento dado pela Filosofia à questão da divindade no viés religioso.

Por fim, você poderá aprofundar os seus conhecimentos a respeito do diálogo entre religião e filosofia em torno do Divino lendo o artigo Ensino Religioso: Um Campo de Aplicação da Ciência da Religião, escrito por Elisa Rodrigues e publicado na revista Horizonte. Nesse artigo, a autora, ao abordar as possíveis classificações do ensino religioso, trata da subárea de conhecimento das Ciências da Religião.

Referências Bibliográficas

CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

JUNQUEIRA, S. R. A.; OLENIKI, M. L.; ORTIZ, F. P. Caderno pedagógico para o ensino religioso: crenças religiosas e filosofias de vida: com roteiros de atividades para o ensino fundamental. Petrópolis: Vozes, 2023. 

LAW, S. Filosofia: guia ilustrado Zahar. Tradução: M. L. X. A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

MONDIN, B. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. Tradução: J. Renard. 10. ed. São Paulo: Paulus, 1980.

PASCAL, B. Pensamentos. Tradução: O. Bauduh. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: patrística e escolástica. Tradução: I. Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003. v. 2.

SHAKESPEARE, W. Hamlet. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005.

SWEETMAN, B. Religião. Tradução: R. C. Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. 

Aula 3

Filosofia

Filosofia

Olá, estudante! Nesta videoaula, você conhecerá um tipo de conhecimento: o conhecimento filosófico, suas especificidades, como se deu a passagem do mito ao logos e como se desperta o olhar filosófico.

Este conteúdo nos ensinará a respeitar e valorizar todos os tipos de conhecimento, por isso a sua importância.

Vamos lá!

Ponto de Partida

O conhecimento a partir do senso comum tem sua base no mundo que captamos diretamente, sem mediações e sem crítica; já o conhecimento religioso tem a sua base nos pressupostos da fé; e a filosofia tem a sua base naquilo que pode ser compreendido com segurança, de modo claro e lógico, a partir da razão, com base nos fatos. Diante disso, agora, vamos lhe apresentar as especificidades da filosofia, como se deu a passagem do mito ao logos, permitindo o surgimento da filosofia, e como se desperta o olhar filosófico.

Tomando por base que a palavra filosofia se originou de duas palavras da língua grega, philos (amigo) e sophia (sabedoria), desafiamos você a analisar criteriosamente a seguinte afirmação de Kant (2001, 672): “Entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte, aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente): quanto ao que respeita à razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar”.

Diante disso, aceita subir mais um degrau em nossas reflexões? Esperamos que sim, pois já vimos que a filosofia é imprescindível para conduzirmos a vida. 

Vamos Começar!

A Filosofia nasceu na magna Grécia, mais precisamente em Mileto, na região da Jônia, atual Turquia, como uma tentativa de se compreender racionalmente a ordem (em grego, diz-se Kosmos) presente na natureza (em grego, diz-se physis). Como para os gregos a matéria é eterna, sem começo e sem fim, eles se empenharam em descobrir a matéria que estaria no princípio (em grego, diz-se arché) de tudo.

Ao contrário dos mitos que a antecederam e segundo os quais a crença se dava por conta da autoridade do seu narrador, na Filosofia, a autoridade não é o filósofo, mas a razão (logos, em grego). Por conta disso, a Filosofia consegue dialogar razoavelmente bem tanto com o conhecimento religioso quanto com o conhecimento científico, evitando contradições e não recorrendo às fábulas e coisas incompreensíveis, mas às explicações coerentes, lógicas e racionais. 

Especificidades da filosofia

O pensamento filosófico é descrito como crítico (com critérios), profundo (aprofunda-se ao máximo no entendimento) e reflexivo (dobra-se sobre si mesmo, ou seja, questiona a si mesmo), tendo como suas especificidades:

  • Tendência à racionalidade: somente a razão, com seus princípios e regras, é o critério da explicação de alguma coisa.
  • Tendência à profundidade: a solução de um problema é sempre submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca sendo aceita como uma verdade sem provas de sua veracidade.
  • Orientação por regras: o filósofo é aquele que justifica suas ideias mostrando que segue regras lógicas e universais do pensamento.
  • Recusa de explicações preestabelecidas: exigência de que, para cada problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele.
  • Tendência à generalização: mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes, porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades.

Siga em Frente...

A passagem do mito ao logos

Os pressupostos para melhor compreendermos as bases do conhecimento grego são:

  • Tudo se relaciona ao arquê (primeiro princípio).
  • A matéria (natureza, physis) é eterna, não houve o momento da criação.
  • O tempo é circular e cíclico.
  • Desaparecem os elementos míticos.
  • Há uma ordem (cosmos) no mundo, regida pelo logos (razão).
  • A composição do cosmos é unicamente de elementos naturais.
  • O homem é um microcosmo também regido pelo logos.

Para Marilena Chauí (2000), alguns fatores possibilitaram que a filosofia surgisse naquele momento e naquele local. São eles: as viagens marítimas; a invenção do calendário; a invenção da moeda; o surgimento das cidades; a invenção da escrita alfabética; e o surgimento da política. A isso se soma a convicção de que as explicações mitológicas pareciam não ser mais suficientes e o fato de as pessoas começarem a buscar “explicações naturais para os processos e acontecimentos até então atribuídos a agentes e poderes sobrenaturais; a magia e o ritual foram lentamente cedendo lugar à ciência e ao controle; e nasceu a filosofia” (Durant, 1996, p. 31).

O conhecimento filosófico teria sido o início do conhecimento racional e se originado no século VI a. C., nas colônias gregas, mais especificamente em Mileto, cidade situada no território que pertence à Turquia, mas que, naquela época, compunha a Magna Grécia e se chamava Jônia. Os primeiros filósofos são chamados de pré-socráticos, e o primeiro deles é Tales de Mileto (625-558 a.C.). A preocupação deles era descobrir qual foi o elemento natural e físico, portanto, que originou tudo o que existe, e esse primeiro elemento ou
elemento primordial, em grego, diz-se arquê.

Na antiguidade, filosofia era a totalidade do saber, mas a partir de certo momento, as áreas específicas do conhecimento foram ganhando autonomia e se separando da filosofia.

Despertar o olhar filosófico

No Mito da Caverna, Platão diz que o prisioneiro que se libertou da caverna teve a sua visão ofuscada pela claridade (a claridade é o símbolo do bem, do belo e do verdadeiro) e que só na manhã seguinte conseguiu enxergar as coisas em si. “Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a verdade” (Chauí, 2000, p. 113), e esse despertar para a busca da verdade é o que chamamos de educação.

E sobre isso, veja o que disse Platão:

A educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que introduzem a ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos. [...] Existe na alma uma faculdade e um órgão pelo qual ela aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, se não juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do ser. A isso chamamos bem (518c). [...] A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso (518d). 

Despertar o olhar filosófico é buscar ver além das aparências, alcançando o ser do modo como ele é, se fato; é superar a aparência e chegar à essência. Para que isso aconteça, há de se evitar passar ideias e convicções, mas ajudar o interlocutor a desenvolver as suas próprias ideias, fazendo-o pensar por si, desenvolvendo conhecimento e não apenas assimilando.

Mais do que ensinado, o amor ao conhecimento deve ser despertado. 

Vamos Exercitar?

Você deve se lembrar que foi desafiado a analisar criteriosamente a seguinte afirmação de Kant (2001, 672): “Entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte, aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente): quanto ao que respeita à razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar”.

O próprio Kant nos ajuda a responder à questão, uma vez que: 

[...] não se pode aprender nenhuma filosofia; pois onde está ela? Quem a possui? Por que caracteres se pode conhecer? Pode-se apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão na aplicação dos seus princípios gerais em certas tentativas que se apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razão tem de procurar esses próprios princípios nas suas fontes e confirmá-los ou rejeitá-los (Kant, 2001, p. 672). 

Diante disso, podemos dizer que é possível ensinar alguém a filosofar quando lhe oferecemos as condições necessárias para se tornar mais crítico, desde que queira e se esforce para tal, mas não podemos ensiná-lo filosofia, pois sendo a filosofia uma postura de amor ao saber, o amor não é racional, não se ensina, ele é sentimento, portanto, desenvolve-se.

A filosofia não ensina a verdade, ensina-nos a buscar a verdade.

Saiba Mais

Conheça mais as especificidades da Filosofia lendo o texto Dilthey e o Conhecimento. Nele, o autor faz uma reflexão sobre a contribuição da filosofia para o conhecimento.

Para entender melhor como se deu a passagem do mito ao logos, recomendamos a leitura do tópico 1.3 Mito e Filosofia, do livro Introdução à Filosofia Antiga. Nele, o autor apresenta como se deu a passagem entre esses tipos de conhecimento.

Caso queira aprofundar a sua compreensão acerca do conhecimento filosófico, indicamos a leitura do artigo O Ensino de Filosofia e a Criação dos Modos de Vida, escrito pelos professores Daniel Salésio Vandresen e Rodrigo Pelloso Gelamo. Nesse artigo, os autores buscam desenvolver outro olhar sobre a filosofia, a vida e o seu ensino, valendo-se da contribuição de Foucault, quando este se propõe a pensar a filosofia como uma atitude crítica sobre o modo como conduzimos a nossa vida

Referências Bibliográficas

BRAGA JUNIOR, A. D.; LOPES, L. F. Introdução à filosofia antiga. 1. ed. Curitiba: Intersaberes, 2015.

CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

DURANT, W. A história da filosofia. Tradução: L. C. N. Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução: M. P. Santos. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

PLATÃO. A república. Tradução: M. H. R. Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 

Aula 4

Conhecimento científico

Conhecimento científico

Olá, estudante! Nesta videoaula você conhecerá um tipo de conhecimento: o conhecimento científico, suas especificidades, como ocorreu a emancipação da ciência na modernidade e como ciência e técnica acabaram se unindo.

Este conteúdo nos ensinará a respeitar e valorizar todos os tipos de conhecimento, por isso a sua importância.

Vamos lá!

Ponto de Partida

A ciência é a filha que cresceu mais do que a mãe; ela nasceu a partir da Filosofia, mas, hoje, é o conhecimento mais aceito, mais respeitado e com as maiores promessas nos círculos acadêmicos.

A ciência foi gestada no ventre da Filosofia, mas só no começo da Idade Moderna se tornou emancipada. Praticamente, todos os filósofos pré-socráticos, desde Tales até Demócrito, contribuíram para a ciência em algum aspecto, e para demonstrarmos que filosofia e ciência caminhavam juntas, lembremos que Galileu Galilei, o pai da ciência moderna, apesar de médico, matemático e astrônomo, lutou por muito tempo para adquirir o título de filósofo.
Ele dizia: “estudei mais anos de filosofia do que meses de medicina e como sou considerado médico, nada mais justo do que ser também considerado um filósofo” (Rovighi, 1999, p. 48).

Vamos lhe apresentar as especificidades do conhecimento filosófico, como se deu a emancipação da ciência em relação à filosofia na Idade Moderna e como acabou sendo estabelecido um vínculo entre ciência e técnica e que, de certo modo, permanece até hoje.

Queremos que você conheça esses conteúdos a ponto de poder se posicionar criticamente diante de duas afirmações; são elas: “Os tolos, quando infelizes, são sábios” (Pessanha, 1996, p. 276) — frase proferida por Demócrito de Abdera, um respeitado cientista da Grécia antiga, possível descobridor do átomo; e a frase bíblica extraída do livro do Eclesiastes (1, 18): “Muita sabedoria, muito desgosto, quanto mais conhecimento, mais sofrimento”.

Aguente firme e vamos juntos aprender mais sobre o conhecimento científico! 

Vamos Começar!

Os mitos deram origem à filosofia e a filosofia deu origem à ciência. O viés científico estava presente na reflexão filosófica quando ela se propôs a buscar uma compreensão do mundo, unicamente, a partir da razão. Lembremos que os gregos não faziam experiências, sua ciência era feita a partir da observação e da reflexão, apenas, e foi só no começo da Idade Moderna, a partir de Francis Bacon e Galileu Galilei, que a experimentação começou a fazer parte do método de aquisição de novos conhecimentos.

Francis Bacon é o pai do método experimental e Galileu Galilei é o pai da ciência moderna. A experimentação é acrescentada, sem excluir a observação e a reflexão, a fim de permitir maior universalização aos conhecimentos científicos.

Especificidades do conhecimento científico

Entre as especificidades da ciência, estão os princípios da objetividade, universalidade e da aplicabilidade, que buscam tornar o conhecimento neutro, universal e necessário. A universalidade pode ser facilmente observada nas ciências naturais; por exemplo, a água entra em ebulição quando atinge 100º celsius estando ao nível do mar, e isso significa que essa
explicação pode ser identificada e aplicada em vários lugares e em momentos diferentes, sem que haja uma mudança explicativa.

A objetividade tem a ver com a exatidão, com a positividade, e outro exemplo é a soma dos ângulos internos de um triângulo ser 180º, logo, o resultado da soma não pode ser 179º e nem 181º. O oposto ao universal é o particular, e o aposto do necessário é o contingente (ao acaso, acidentalmente).

A aplicabilidade é um aspecto que foi incorporado à ciência apenas na modernidade; a ciência antiga era teorética, apenas contemplava os seres naturais, sem intervir neles ou sobre eles, mas a moderna se constitui de um saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida e à técnica, desde quando Francis Bacon estabeleceu que “saber é poder” e que Descartes afirmou que “a ciência deve tornar-nos senhores da Natureza” (Chauí, 2000, p. 327).

Siga em Frente...

A emancipação da ciência na modernidade

Contribuíram para a emancipação da ciência as descobertas e invenções, as mudanças de concepção de mundo (de geocêntrica para heliocêntrica, de terra plana para esférica) e a emancipação da filosofia em relação à teologia, pois poder pensar e escrever o que se pensa sem precisar pedir a permissão eclesiástica representou um sobressalto no conhecimento.

Com a chegada do renascimento e as ideias de Nicolau de Cusa, Copérnico e Giordano Bruno, a Igreja sentiu suas bases epistemológicas balançarem e entraram em cena novas maneiras de se fazer ciência, valendo-se de experiência e demonstração. À observação, juntou-se a experimentação e a matemática (menosprezada por Aristóteles), que passou a ser considerada a verdadeira linguagem da natureza (Pessanha, 1978).

Diante disso, a Teologia foi deixando de ser a ciência das ciências e as diversas esferas do saber (disciplinas) foram se emancipando, ganhando autonomia, vida própria, com objetos e métodos próprios. O teocentrismo foi sendo suplantado por um antropocentrismo e formou-se o pano de fundo para o que viria a ser conhecido como ciência moderna.

Ciência e técnica

A ciência moderna nasceu vinculada à ideia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência passou a ser considerada não apenas contemplação da verdade, mas, sobretudo, o exercício do poderio humano sobre a Natureza (Chauí, 2000).

Nessa época, o capitalismo estava aparecendo e buscava ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, e foi assim que a nova ciência se juntou a técnica e dela se tornou inseparável; aliás, mais da tecnologia do que da técnica.

A técnica, aliás, é um conhecimento empírico que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas; já a tecnologia é um saber teórico que se aplica na prática. Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar; um cronômetro é um objeto tecnológico: sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber; já uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica.

Um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna se tornou inseparável da tecnologia (Chauí, 2000). 

Vamos Exercitar?

Retomando a questão colocada sobre a frase de Demócrito (“Os tolos, quando infelizes, são sábios”) e a de Eclesiastes (“Muita sabedoria, muito desgosto, quanto mais conhecimento, mais sofrimento”), podemos entender que, caso a infelicidade sentida pelo tolo seja em decorrência de estar ciente das limitações do seu conhecimento, ele, então, está demonstrando sabedoria aos moldes socráticos, ao confessar saber que não sabe tudo, ou seja, se ele é infeliz por saber que é tolo, já apresenta certo grau de sabedoria.

Quanto à frase de Eclesiastes, podemos perceber que a sabedoria (ou o conhecimento) nos confere uma noção mais clara da nossa finitude e das nossas limitações, o que pode gerar sofrimento, corroborando a frase do Schopenhauer já citada: “Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência” (2000, p. 17).

Outra inferência que podemos extrair das frases, agora já mais ligada ao conteúdo aqui abordado, diz respeito ao uso da ciência voltada para o seu aspecto tecnológico, pois as nossas invenções vêm afetando o meio ambiente e as condições de vida da nossa espécie, podendo, até mesmo, comprometer a nossa existência, ou seja, muita ciência (mal aplicada), muito sofrimento. Em síntese, o que gera benefícios e malefícios não é o conhecimento científico em si, mas o seu uso. A lucratividade não pode estar acima da preservação das condições de vida, de todas as espécies de vida, animal, vegetal e mineral. 

Saiba Mais

Conheça mais as especificidades do conhecimento científico lendo o tópico 2.6 – Conhecimento verdadeiro: a polêmica filosófica e científica, no livro Introdução à Epistemologia: Dimensões do Ato Epistemológico. Nele, o autor faz uma análise bastante interessante do diálogo entre a filosofia e a ciência.

Também aprofunde o seu conhecimento sobre ciência e técnica lendo o Quadro 4. O Humanismo e o Renascimento, do tópico 1.1 O Desenvolvimento Histórico do Processo Epistemológico, da obra supracitada. Nele, você vai encontrar as principais nuances acerca do vínculo tratado neste conteúdo.

A fim de que possa enriquecer a sua compreensão acerca da emancipação da ciência, propomos a leitura do artigo Da Construção do Conhecimento Científico, de Isa Maria Freire. Nele, a autora aborda a construção do conhecimento científico na perspectiva do desenvolvimento das forças produtivas na sociedade, em especial no capitalismo industrial.

Referências Bibliográficas

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.

CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

FARIA, J. H. Introdução à epistemologia: dimensões do ato epistemológico. Jundiaí: Paco e Littera, 2022. E-book.

PESSANHA, J. A. M. Galileu: vida e obra. In: BRUNO, G.; GALILEI, G.; CAMPANELLA, T. Bruno, Galileu, Campanella. 2. ed. Tradução: Helda Barraco, Nestor Deola, Aristides Lôbo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os pensadores).

PESSANHA, J. A. M.  Os pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os pensadores).

ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. São Paulo: Loyola, 1999.

SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria de vida. São Paulo: LeBooks Editora, 2020. 

Encerramento da Unidade

Os tipos de conhecimentos e suas especificidades

Videoaula de Encerramento

Olá, estudante! Nesta videoaula, você conhecerá como se dá a interseção entre os diversos tipos de conhecimento: o senso comum, o conhecimento religioso, o filosófico e o cientifico, bem como as suas especificidades, as suas importâncias e aplicabilidade.  

Este conteúdo nos ensinará a respeitar e valorizar mais todos os tipos de conhecimento, por isso a sua importância.

Vamos lá!

Ponto de Chegada

Estamos chegando ao fim desta primeira unidade de estudo, em que buscamos te ajudar a compreender de forma crítica as especificidades dos diferentes tipos de conhecimento abstrato. O conceito de crítica é o de purificação, filtragem; trata-se da análise minuciosa, profunda, abrangente e com critérios daquilo que é analisado, portanto, é com essa postura que devemos nos voltar para os diversos tipos de conhecimento.

Existem cinco tipos de conhecimento, sendo quatro abstratos e um prático: a técnica. Os abstratos foram apresentados aqui; são eles: o senso comum, a religião, a filosofia e a ciência. Cada um deles tem a sua especificidade e o seu valor, e o conhecimento é, muitas vezes, descrito como uma visão de mundo, sendo assim, tem a ver com o olhar, com o enxergar a realidade em que nos encontramos imersos. Um exemplo disso é a situação do prisioneiro apresentado por Platão, no Mito da Caverna, no livro VII de sua obra A República, em que ele aborda tais conhecimentos vinculando-os com a questão do olhar.

O primeiro conhecimento, o senso comum, foi identificado por Platão (2001), descrito em língua grega como Doxa, e representa o momento em que o prisioneiro só enxerga as sombras no fundo da caverna, como nós, quando acreditamos que o mundo é exatamente do modo como o observamos.

O segundo momento, a crença ou pistis, em língua grega, quando o prisioneiro, já liberto, contempla as coisas à luz da fogueira; sua visão é limitada àquilo que uma luz externa lhe permite observar, nesse caso, a crença não se restringe às crenças religiosas, mas se estende às nossas concepções políticas, heranças culturais etc.

No terceiro momento, já fora da caverna e com os olhos ofuscados pela claridade, o prisioneiro vê as coisas refletidas na água, e esse seria, para Platão, o conhecimento científico, descrito como dianoia, e ocorre quando a visão já está ampliada em relação ao momento anterior, mas ainda se vê apenas as formas refletidas e não as coisas em si; além disso, trata-se de um conhecimento fragmentado e não da realidade como um todo.

Por último, o quarto momento, o qual só ocorre depois que os seus olhos se acostumaram com a claridade e é possível olhar os objetos em si, assim como toda a realidade que o cerca. Só nesse momento se tem uma visão da realidade como ela é, uma visão do todo, holística, que Platão identifica com a noesis. Trata-se de um conhecimento puro, imediato e intuitivo que busca abarcar a essência das coisas para além da simples aparência.

Essas formas de conhecimento, ou seja, as maneiras de enxergar o mundo, estão presentes no nosso dia a dia, na cabeça das pessoas, nos seus posicionamentos, em suas tomadas de decisões; elas conduzem as pessoas ao longo das suas vidas, umas mais, outras menos, e, em alguns momentos, recorremos mais a um tipo de conhecimento do que a outro, mas eles estão na base das nossas ações e convicções.

O nosso intuito ao te apresentar essa reflexão sobre as formas de conhecimento, além de aumentar as suas perspectivas cognitivas, é, como já dissemos, buscar te ajudar a desenvolver a capacidade crítica diante da realidade, a qual, talvez, possa ser compreendida como algo construído em nossa mente por conta de vários fatores, tanto religiosos quanto políticos, filosóficos, científicos e culturais. 

Reflita

  1. Desde o começo da Filosofia, uma questão intriga os pensadores: será que as coisas são exatamente do modo como as captamos? Será que a aparência corresponde à essência das coisas? Será que existe quem veja coisas que não conseguimos ver? Diante disso, propomos a você que reflita com profundidade sobre a seguinte questão: você tem certeza que capta o mundo, com todos os seus detalhes, como ele é de fato?
  2. Embora existam diferentes tipos de conhecimento, todos eles são importantes e válidos; em determinadas situações, alguns nos valem mais do que outros, mas não há uma hierarquia entre eles, embora o conhecimento científico seja aquele que vem nos oferecendo respostas bastante convincentes. Sendo assim, queremos que você reflita e busque responder ao seguinte questionamento: é possível chegarmos a uma compreensão de mundo mesclando todas as formas de conhecimento?
  3. Por vezes, somos tentados a achar que o mundo evoluiu até os nossos dias, mas que, doravante, não há mais o que evoluir. Aplicando isso aos conhecimentos, percebemos que eles vieram se desdobrando ao longo da história, permitindo, há 400 anos, aproximadamente, o surgimento da ciência moderna. Mas será que essa evolução parou? Reflita e responda: o Mito originou a Filosofia, que originou a Ciência, logo, seria possível a Ciência originar um novo tipo de conhecimento? 

É Hora de Praticar!

Nós devolvemos para o mundo exatamente aquilo que o mundo põe em nossa cabeça, mas não conseguimos perceber isso muito claramente. Dizendo de outra maneira: “Você é o seu cérebro” (Law, 2008, p. 136).

Reflita

Com base na premissa apresentada, explique por que o filme Matrix pode ser considerado uma nova versão do Mito da Caverna, de Platão. 

Resolução do estudo de caso

O pano de fundo do Mito da Caverna e do filme Matrix é o mesmo. A visão dualista que Platão apresenta por meio da teoria das ideias, transmitida de modo figurativo pelo Mito da Caverna, tem sido tema de filmes e ficções, sendo a trilogia Matrix uma delas. “A trilogia de filmes de ficção científica Matrix aproximou o experimento mental da realidade simulada para a cultura popular” (Weeks, 2014, p. 51).

Matrix explora a peculiaridade da dúvida filosófica, sugerindo que o mecanismo de funcionamento de nosso cérebro pode ser criado virtualmente, por meio de terminais oriundos de um computador, e que, ligados ao nosso cérebro, podem nos transmitir uma realidade virtual a qual não temos condições de diferenciar da verdadeira realidade. “No filme Matrix, uma inteligência comandada por máquinas aprisiona a consciência humana num mundo inventado. Os céticos alegam que não conseguiríamos reconhecer a farsa num caso assim” (Law, 2008, p. 51). 

Assim como os prisioneiros da caverna não conseguem perceber que existe outra realidade além daquela diante dos seus olhos, o personagem do filme tem o seu cérebro sendo comandado por uma máquina criando uma realidade virtual que, para ele, é real. “Nós somos como esses prisioneiros, ensinados desde que nascemos a acreditar que os fenômenos, as experiências do dia a dia são tudo o que existe” (Dave; Groves, 2012, p. 24). 

Dê o play!

Assimile

Confira a seguir uma síntese desta unidade.

A imagem é um diagrama organizacional que categoriza diferentes modos de conhecimento. Utiliza blocos de texto roxos e conexões para ilustrar como o conhecimento pode ser teórico (abstrato) ou prático, com subcategorias mais específicas. Linhas pretas conectam as categorias "Teórico (abstrato)" e "Prático" às suas respectivas subcategorias e descritores. A organização visual é hierárquica, começando com o título e dividindo-se em principais formas de conhecimento (Teórico e Prático), com ramificações adicionais de subcategorias e descritores abaixo. No topo há o título: CONHECIMENTO (Um modo de compreender e explicar o mundo). Escrito em letras brancas sobre um fundo roxo, localizado na parte superior central da imagem. No nível abaixo há duas categorias: Teórico (Abstrato) e Prático. Teórico (abstrato) à esquerda, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo. Prático, à direita, no mesmo nível do "Teórico (abstrato)". Mais um nível abaixo estão as subcategorias: Subcategorias de Conhecimento Teórico: abaixo de Teórico (abstrato), estão: Senso Comum:  à esquerda, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo. Religião: à direita de Senso comum, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo. Filosofia: à direita de Religião, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo. Ciência: à direita de Filosofia, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo. Descritores das Subcategorias de Conhecimento Teórico Descritor abaixo de Senso comum, há o texto Espontâneo/natural, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo claro. Descritor abaixo de Religião, há o texto: Baseado na crença/fé, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo claro. Descritor abaixo de Filosofia, há o texto: Racional à luz dos fatos, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo claro. Descritor abaixo de Ciência, há o texto: Comprovado, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo claro. Notas abaixo da estrutura de conhecimento Teórico (abstrato): Dentro da caverna: localizado na parte inferior esquerda, escrito em letras roxas, abrangendo as subcategorias Senso comum e religião. Fora da caverna: localizado na parte inferior central, escrito em letras roxas, abrangendo as subcategorias Filosofia e Ciência. Subcategoria de Conhecimento Prático Abaixo de Prático, à direita, está: Técnica: diretamente abaixo de Prático, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo. Descritor da Subcategoria de Conhecimento Prático: Descritor abaixo de Técnica, há o texto Saber fazer, escrito em letras brancas sobre um fundo roxo claro.

Referências

DAVE, R.; GROVES, J. Entendo filosofia: um guia prático da história do pensamento. Tradução. M. N. Peres. São Paulo: Leya, 2012.

LAW, S. Filosofia: guia ilustrado Zahar. Tradução: M. L. X. A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.

MATRIX. Direção: Andy Wachowski; Larry Wachowski. Roteiro: Andy Wachowski; Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. USA: Warner Bros, 1999. (136 min.), son., color.

PLATÃO. A república. 9. ed. Tradução: M. H. R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

WEEKS, M. Se liga na filosofia. Tradução: R. Longo. São Paulo: Globo, 2014.