Ética e Política
Aula 1
Vida Coletiva e Padrões de Comportamento Éticos
Vida coletiva e padrões de comportamento éticos
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Ponto de Partida
Olá, estudante! Aqui iniciamos nossa jornada em direção à complexa rede de relações, valores e estruturas que compõem a realidade brasileira. Este material se baseia no conhecimento sistematizado por Hugo Conti e Patrícia Alves (2019). Em sua opinião, nossa sociedade tem como orientação principal de funcionamento os princípios ou o poder? Agimos coletivamente em função de uma busca para estabelecermos aquilo que consideramos correto ou nossa realidade pode ser mais bem compreendida a partir das relações de força que são estabelecidas em nosso país?
Repare que essa busca pela ação correta pode incluir processos amplos de nossa vida em coletividade: há problema em empresas privadas financiarem campanhas políticas? Seria correto manter benefícios para funcionários públicos que já recebem salários altíssimos? Há, ainda, decisões que envolvem a nossa vida privada: se uma regra nos parece injusta, devemos obedecê-la? Considerar uma ação correta ou incorreta é algo que se faz sozinho ou deve-se levar em conta aspectos sociais?
A mesma abrangência deve ser considerada na análise das relações de poder, já que elas se manifestam em escalas elevadas: até onde deve ir à intervenção do Estado brasileiro em nossa sociedade? A maioria deve sempre se impor? E em nosso cotidiano individual: o serviço público que utilizo é um favor que me foi oferecido ou é um direito que me é assegurado? Meu ato individual pode ter impacto na sociedade?
Portanto, se pretendemos analisar a diversidade de fatores da vida coletiva de nosso país, é provável que estas duas orientações – princípios e poder – apareçam em nossa análise (Conti, Alves, 2019). Por isso, é interessante recorrermos a dois domínios do conhecimento voltados a esses assuntos: a ética e a política. Embora esses temas sejam tratados frequentemente em nosso dia a dia, o estudo mais aprofundado desses campos do conhecimento, conforme faremos nesta primeira unidade, será um importante suporte para compreendermos o ambiente que nos cerca e até mesmo nosso próprio cotidiano.
A partir de uma compreensão humanista do que consiste a vida em sociedade, poderemos, então, identificar alguns requisitos para uma participação cidadã na comunidade que nos abriga. As respostas a essas e outras indagações serão trabalhadas à medida que analisarmos os fundamentos da filosofia ética e suas relações com os dilemas que despontam em nosso cotidiano, bem como os diferentes tipos de organização política e seus vínculos com nosso desenvolvimento enquanto sociedade.
Vamos Começar!
Se é verdade que os juízos morais podem concordar com uma norma jurídica – ou mesmo com duas normas que, em um caso concreto, são conflitantes –, é crucial observar que esses valores derivam de uma consciência moral, a qual reflete valores e sentimentos pessoais. Na formação da moral, mais relevante do que a existência de uma lei, estão as convicções individuais, que podem ou não coincidir com a norma jurídica. Nesse contexto, a moral de uma pessoa pode até mesmo contradizer uma norma social; contudo, a ética deve guiar a condução de nossas vidas.
O termo "ética" deriva da palavra grega "ethos", cujo significado em nosso idioma está relacionado às ideias de "modo de ser" ou "bom costume". Isso revela que, pelo menos desde a Grécia Antiga, o homem se dedica a analisar de que maneira as condutas dos indivíduos podem contribuir para uma convivência satisfatória. Dessa forma, a ética se consolida como o campo do conhecimento voltado para a determinação racional das finalidades boas e más a serem buscadas pelos seres humanos. Ela investiga a essência das condutas consideradas certas ou erradas, assim como os fundamentos dos princípios e valores que embasam os juízos, obrigações e deveres que condicionam e qualificam o comportamento humano.
Trata-se de uma disciplina fortemente normativa, que prescreve ações e julgamentos a serem valorizados na condução de nossas vidas, em vez de apenas retratar a realidade observada. Além disso, ao destacar a razão como método para perceber o caráter correto ou incorreto de uma ação, a ética fortalece a responsabilização individual por uma conduta, uma vez que o ser humano dispõe de mecanismos racionais para identificar a justiça ou injustiça de seus atos. Entretanto, a ética não é um conhecimento encerrado, com determinações já totalmente reveladas, mas sim o que estabelecerá fundamentos amplos para a apreciação da conduta adequada em uma situação.
A resposta à pergunta "qual a conduta correta para o aprimoramento de nossa convivência coletiva?", abrange diversos componentes da vida social, como a organização política, as ciências e a moral. Esses elementos exercem influência nas maneiras de conceber a ética. No que diz respeito à moral, alguns esclarecimentos se tornam necessários.
A classificação de um comportamento como "moral" ou "imoral" gera efeitos semelhantes à afirmação de que uma conduta é "ética" ou "antiética". Isso ocorre porque esses termos são frequentemente utilizados como se fossem conceitos equivalentes, inclusive em obras clássicas do campo de estudo. No entanto, é crucial reconhecer a existência de importantes diferenças entre esses conceitos.
Etimologicamente, a palavra "moral" deriva do termo latino “moralis”, cujo significado se aproxima de "relativo aos costumes". Trata-se de um conjunto de normas que regulamenta a conduta dos indivíduos na sociedade, seguindo tradições, referências educacionais, culturais e práticas rotineiras.
Siga em Frente...
Ética e moral
Embora tanto a ética quanto a moral busquem orientar o que é certo e errado nas ações humanas, a ética pressupõe que essa qualificação resulte de uma elaboração baseada na coletividade, ultrapassando os indivíduos considerados isoladamente - não existe, portanto, uma "ética individual". Já a moral fundamenta sua apreciação na razão e consciência pessoais, levando em conta as repercussões e influências sociais do ato.
Assim, a moral pode apresentar maior diversidade, refletindo condutas, práticas e desejos variáveis para cada indivíduo, tempo e local da ação. Por outro lado, a ética se ocupa da sistematização da moralidade, objeto de seu estudo, apresentando, portanto, princípios e regras relativamente mais amplos e duradouros.
Essas diferenças possibilitam divergências entre enquadramentos éticos e morais, pois uma convenção moralmente aceita em uma sociedade específica pode não satisfazer uma reflexão ética, por não se adequar a princípios gerais do que seria bom, justo ou correto.
Nesse mesmo sentido, é comum que grupos distintos de indivíduos, mesmo compondo uma mesma coletividade, tenham comportamentos orientados por padrões diferentes do que consideram moralmente aceitável. Isso ocorre devido às diferenças nos costumes, tabus e vontades incorporados por cada um deles. No entanto, quando tratamos da ética, tais divergências são superadas, pois as concepções morais são interpretadas para identificar padrões éticos aplicáveis a todos (Conti, Alves, 2019).
A problematização de aspectos da vida social, equivocadamente equiparados à ética, não ocorre apenas com a moral, mas também com a religião, que é muitas vezes aplicada em situações que exigiriam uma análise ética.
A origem dessas confusões reside no fato de que tanto a ética quanto a religião prescrevem regras de conduta e postura aos indivíduos. Contudo, ética e religião apresentam divergências que justificam sua distinção como campos autônomos do saber. A ética é eminentemente racional, baseada em processos lógicos inteligíveis, enquanto a compreensão religiosa, em seus diversos credos, possui forte componente dogmático, valendo-se de liturgias, mandamentos e sacralizações que transcendem os limites racionais. Além disso, a fundamentação ética busca regramentos aplicáveis a toda a coletividade, diferenciando-se da pluralidade religiosa presente na sociedade.
Embora componentes éticos possam existir nos preceitos religiosos, é esperado que outros mandamentos da religião difiram dos procedimentos racionais defendidos pela ética. Inversamente, a ética não se vincula aos preceitos de um credo religioso específico, sendo plenamente viável que um indivíduo ou sociedade desprovidos de confissões religiosas recorram ao campo ético, já que os dilemas cotidianos não são exclusivos de uma crença específica.
Quando nos deparamos com uma situação em que nenhuma ação está livre de efeitos morais negativos, sem uma solução óbvia e inquestionável, ou quando a resposta preconizada pela lei, tradição ou outra fonte de orientação parece confrontar uma convicção racional relevante, enfrentamos um dilema moral.
Dilemas morais
Os dilemas morais evidenciam a complexidade no exercício de nossa liberdade de escolha, pois a existência de consequências negativas decorrentes de nossas decisões, ou a apreciação dos valores a serem preferidos em um caso concreto, demandam o estabelecimento de certos critérios racionais que podem não ser tão evidentes.
Imagine, estudante, um médico legista que tenha acesso aos corpos de vítimas de acidentes fatais. Preocupado com a baixa disponibilidade de órgãos para doação, o médico resolve, por conta própria e sem qualquer autorização formal, extrair dos finados os órgãos que permanecem funcionais, destinando-os à doação. A atitude do médico pode ser considerada correta? Se você acredita que sim, provavelmente fundamentou sua decisão no fato de que tal conduta apresenta efeitos positivos, na medida em que novas vidas poderão ser salvas a partir da doação. Essa justificativa se aproxima do raciocínio consequencialista, que busca nos resultados de um ato sua validação. Esse critério de análise é representativo da filosofia utilitarista, que defende a maximização da utilidade, ou da capacidade de produzir bem-estar e felicidade coletivos, algo que pode ser inclusive matematicamente quantificado pelo número de pessoas, intensidade ou duração envolvidos no benefício em questão, conforme argumentava Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
Se, em sentido oposto, você rejeita a conduta do médico, deve ser porque considera o ato de retirar os órgãos sem qualquer autorização prévia do falecido ou de seus familiares como sendo uma atitude por si só incorreta. Trata-se, nesse caso, de uma abordagem deontológica, que categoriza a ação humana a partir de percepções principiológicas dos deveres e direitos existentes, relativizando suas consequências, à luz do que defendia Immanuel Kant (1724-1804).
Considere-se, agora, de férias em um país estrangeiro; você repara que nesse Estado é comum que crianças comecem a trabalhar desde idades muito precoces. Ao classificar tal fato como algo incorreto, você provavelmente acredita que existem padrões mínimos de respeito à infância que devem ser observados no Brasil, no país onde você se encontra e em qualquer outro lugar do mundo, sob uma perspectiva universalista. Se, no entanto, você admite que existem particularidades culturais desse povo que justifiquem tal situação, é o enfoque relativista que se sobrepõe em seu raciocínio.
Esses impasses e outros dilemas morais presentes em nossas vidas ressaltam a pluralidade de situações em que não há respostas absolutas ou preconcebidas, elevando a importância do estudo da ética em nosso desenvolvimento individual e coletivo. A emergência dessas questões é algo incontornável da vida humana, e a desatenção em relação aos dilemas tende a ser ainda mais problemática do que as dúvidas por eles suscitadas, na medida em que sugere uma condução automatizada dos afazeres cotidianos, cujo efeito prático é a negação da própria liberdade (Conti, Alves, 2019).
Passados mais de dois mil anos do advento da ética enquanto campo fundamental do conhecimento humano, continuamos a deparar com situações nas quais o exercício de nossa liberdade de escolha encontra-se cheio de dúvidas e angústias diante da inexistência de valores ou critérios incontestáveis para o agir humano. Se é verdade que os avanços tecnológicos nos auxiliam a encontrar algumas respostas para problemas cotidianos que atingem a humanidade, formulando maiores certezas em temas antes duvidosos, temos de reconhecer que as potencialidades oferecidas pelo desenvolvimento científico contemporâneo abrem novos campos de discussão envolvendo a ética.
Ética e tecnologia
Inovações nas áreas de biotecnologia, tecnologia da informação e automação, por exemplo, ao mesmo tempo em que ampliam os horizontes da ação humana, levantam questionamentos éticos essenciais: devemos clonar seres humanos? As empresas de telecomunicação deveriam assumir compromissos no combate à propagação de notícias falsas? Podemos criar robôs militares com capacidade letal? Assim, a expansão das atividades que conseguimos realizar eleva proporcionalmente os questionamentos sobre o que efetivamente devemos fazer.
Nesse sentido, a ampliação das capacitações humanas contrasta com a persistência de desafios para os quais a humanidade já dispõe de soluções tecnológicas, revelando que a continuidade de certos problemas individuais e/ou coletivos não se deve a questões técnicas, mas sim às escolhas que fazemos enquanto sociedade organizada. Isso revela um vínculo primordial entre a ética e a política. O zelo pela convivência coletiva defendido pela filosofia ética enriquece toda a rede de relações em que nossa existência se desenvolve, reconhecendo os aspectos valorativos essenciais de nossa condição humana.
Perceba a função emancipadora do saber ético, garantindo que a inexistência de modelos predeterminados do que deve constituir o agir humano não seja considerada uma limitação às nossas vidas. Pelo contrário, essa condição permite o exercício integral de nossas liberdades, estimulando a reflexão constante sobre o mundo que nos cerca e sobre os caminhos para uma existência plena e em harmonia com os fundamentos de nossa humanidade.
Vamos Exercitar?
A liberdade é um dos valores fundamentais e marcantes da existência humana. O ser humano encontra, na utilização de sua racionalidade e no exercício de seu livre arbítrio, a capacidade de fazer escolhas diante de uma situação concreta. Essa liberdade de julgamento e conduta é essencial, pois as situações que enfrentamos ao longo da vida são inúmeras e imprevisíveis (Conti, Alves, 2019).
Vivendo em comunidades, os seres humanos buscam assegurar que as avaliações e condutas individuais criem entre si uma relação humanizada, estabelecendo um entendimento coletivo direcionado ao aprimoramento da vida em grupo. Isso representa o desenvolvimento do nosso saber ético.
Apesar de nossas liberdades permitirem que nos manifestemos de acordo com nossas individualidades, existem referências compartilhadas daquilo que devemos assumir como condutas e finalidades éticas, diferindo dos padrões morais e religiosos aceitos por cada indivíduo.
Assim, o raciocínio ético é uma atividade eminentemente humana. A ética não está sujeita a processos de codificação e programação, como aqueles observados na construção de máquinas, limitando o uso da tecnologia em contextos nos quais podemos deparar com dilemas morais.
Embora a evolução da tecnologia forneça incontáveis benefícios para a organização e funcionamento de nossas sociedades, é crucial lembrar que essas inovações auxiliam, mas não substituem o raciocínio humano e as avaliações éticas necessárias ao nosso cotidiano.
Definir que a vida humana importa mais do que bens materiais, que a gravidade de uma doença justifica adiantar um paciente na fila de atendimentos médicos ou que a função de salvar vidas pode justificar o excesso de velocidade de um automóvel são ponderações éticas que apenas os humanos são capazes de realizar.
Máquinas podem ser programadas de acordo com algumas considerações éticas estabelecidas por seres humanos. Contudo, as diferentes justificativas para um mesmo ato e a impossibilidade de prever todas as situações cotidianas que envolvem um juízo ético apresentam limites para a visão tecnicista de que a tecnologia oferece solução para todos os problemas humanos.
Esse posicionamento reflete uma postura humanista que, no pleno exercício de nossas liberdades, rejeita uma condução automatizada, mecanicista e, por que não dizer, antiética de nossas vidas.
Saiba Mais
O véu da ignorância
Resumidamente, a maior ingerência do Estado nos setores da vida cotidiana, por meio, por exemplo, da prestação de serviços públicos gratuitos ou a preços módicos eleva os custos do governo, que, frequentemente, passam a ser compensados por maiores impostos cobrados da coletividade.
Imagine que você seja muito mais rico do que na situação financeira em que agora se encontra e, portanto, capaz de pagar por todos os serviços que utiliza; você seria favorável ao aumento da tributação para compensar esses gastos governamentais, que você sequer utiliza? Agora, em sentido inverso, imagine-se muito pobre, dependendo quase que integralmente da assistência pública; a sua opinião anterior sobre a justiça na concessão desses serviços seria mantida ou alteraria seu posicionamento?
Não seria interessante considerarmos a justiça dessas prestações governamentais de modo independente da situação em que atualmente nos encontramos? Esse é o propósito do filósofo John Rawls em sua teoria do “véu da ignorância”, explicada no vídeo “O que é um bom começo? ” (2015), da Universidade de Harvard.
15. O QUE é um bom começo? [S.l.]: Harvard University, 15 nov. 2015. Postado pelo canal Fundação Ivete Vargas. 1 vídeo (25min42s)
Referências Bibliográficas
ALT, F.; LAMA, D. O apelo do Dalai Lama ao mundo: ética é mais importante que religião. Salzburg: Benevento Publishing, 2017.
ARENDT, H. (1963). Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil. New York: Penguin Books, 2006.
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
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ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Edipro, 2014.
ARISTÓTELES. Os pensadores: Aristóteles. São Paulo: abril, 1978.
BAUDRILLARD, J. La société de consommation. Saint-Amand: Folio, 2008.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: contendo o velho e o novo testamento. Salt Lake City: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, 2015.
BARBOSA, V. Rio de Janeiro é primeira capital brasileira a proibir canudos plásticos. Revista Exame, 5 jul. 2018. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/rio-de-janeiro-e-primeira-cidade-brasileira-a-proibir-canudos-plasticos/. Acesso em: 27 nov. 2018.
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Aula 2
Possibilidades Éticas no Mundo Contemporâneo
Possibilidades éticas no mundo contemporâneo
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Ponto de Partida
Olá, estudante! Não é necessário ser muito atento à realidade brasileira para perceber que alcançar o sucesso profissional, plena satisfação pessoal, segurança financeira e a capacidade de vivenciar em total liberdade o que valorizamos constituem objetivos desafiadores, não é mesmo? Vivemos em um mundo repleto de obstáculos e hostilidades que dificultam a trilha que estabelecemos em nosso desenvolvimento pessoal (Conti; Alves, 2019).
Diante de uma variedade de dificuldades impostas pela vida contemporânea – as quais não originamos, mas resultam da forma como a sociedade optou por se organizar –, seria razoável que fôssemos cobrados por adotar um comportamento que valorize a manutenção e articulação dos vínculos sociais? Ou o mundo contemporâneo demanda que nos concentremos exclusivamente em nossas próprias vidas, buscando o que é melhor para nós mesmos, sem sermos responsabilizados por problemas e situações que estão além de nossa esfera particular?
Se a competição para conquistar uma vaga na faculdade e, posteriormente, um emprego satisfatório, é acirrada, devo ponderar sobre o que é benéfico para a sociedade ou apenas assegurar meu crescimento pessoal? Se não determino diretamente os rumos da sociedade, por que deveria assumir a responsabilidade de alertar para os erros que a coletividade eventualmente produz? Se os padrões de felicidade individual acarretam efeitos colaterais prejudiciais, cabe ao indivíduo questionar esses padrões?
Em síntese, é viável manter, nos dias de hoje, condutas voltadas ao desenvolvimento da sociedade, ou a realidade contemporânea exige que o indivíduo abandone perspectivas coletivas em prol de seus ganhos individuais?
As respostas a essas perguntas demandarão a análise de elementos de nosso regime econômico, social e político. Este material está embasado no conhecimento organizado por Hugo Conti e Patrícia Alves (2019). Vamos investigar preceitos do sistema capitalista que nos conduzirão a reflexões sobre o que podemos compreender por liberdade e responsabilidade nos tempos atuais.
Vamos Começar!
Capitalismo e individualismo
Você já percebeu que determinados temas relacionados à vida e à organização coletiva têm o poder de suscitar acaloradas polêmicas em nossas discussões cotidianas, assim como em níveis mais elevados de debates acadêmicos e políticos? O sistema capitalista, sem dúvida, está entre esses temas.
Ao abordarmos o capitalismo, é preciso reconhecer que esse sistema econômico, político e social evoluiu de diferentes maneiras desde suas primeiras manifestações, ainda de forma incipiente, na Europa Ocidental do século XVIII, até se consolidar como o regime predominante no mundo contemporâneo, incluindo sua aplicação em nosso país. Contudo, algumas características fundamentais do capitalismo são essenciais para definir esse sistema, como veremos a seguir.
Primeiramente, observamos que um regime capitalista adota o mercado como principal meio de produção e distribuição de bens e serviços, onde compradores e vendedores interagem para satisfazer suas necessidades. Adicionalmente, a presença da propriedade privada constitui um elemento fundamental do capitalismo, com uma série de direitos garantindo o domínio exclusivo sobre determinados bens. Além disso, o capitalismo requer que uma parcela da população venda sua força de trabalho no mercado para garantir seu sustento. Por fim, identificamos como quarto elemento do capitalismo o comportamento individualista dos agentes econômicos (compradores e vendedores), aspecto que merece atenção especial em nosso estudo, uma vez que, como discutimos anteriormente, ética e política são conceitos coletivos por natureza.
O aspecto individualista do capitalismo foi enfatizado em suas origens por Adam Smith (1723-1790), um dos clássicos do pensamento econômico. Smith argumentou que a prosperidade econômica é essencial para a busca da felicidade humana e deve, portanto, ser o objetivo primordial das sociedades e de seus governantes. Segundo o autor, esse nível mais elevado de produção não decorre da benevolência ou solidariedade dos indivíduos, mas, ao contrário, da busca de cada um por sua própria felicidade.
Existem diversas tarefas necessárias à vida coletiva, e, segundo Smith, cada indivíduo deveria se especializar naquilo que lhe proporcionasse maiores vantagens e resultados individuais. Esse comportamento egoísta, de acordo com o pensamento do autor, leva os indivíduos a trocarem entre si o que produzem e não consomem, resultando em maior prosperidade econômica e satisfação para toda a sociedade.
No século XX, com a consolidação da Revolução Industrial e o fortalecimento do modo de produção baseado na divisão do trabalho, a relação entre o sistema capitalista e o comportamento individualista recebeu ênfase significativa no pensamento do economista e filósofo britânico Friedrich August von Hayek (1899-1992). Hayek argumentava que a ausência de barreiras aos empreendimentos individuais era fundamental para satisfazer os gostos, inclinações e desejos dos indivíduos, algo alcançado por meio da competição. Segundo o autor, o ambiente social deveria estabelecer limites para que os indivíduos pudessem buscar seus próprios valores e preferências, sem a necessidade de princípios amplos compartilhados pela coletividade (Conti, Alves, 2019).
Na prática, o individualismo ressaltado por esses dois representantes da economia capitalista sugere que devemos focar apenas em nossos próprios interesses, pois não haveria referências externas para orientar nosso comportamento cotidiano. Essa perspectiva, expressa na frase "cada um cuida da sua vida", diminuiria a importância e a aplicabilidade de orientações coletivas, como ética e política, para a compreensão e melhoria de nossa sociedade. Contudo, uma análise mais profunda desses argumentos e da realidade em que vivemos aponta limitações para classificar o individualismo como o único fator da ação e organização humanas, como veremos adiante.
De imediato, percebemos que a competição individualista pode acarretar profundos efeitos sociais negativos. Embora a disputa entre pessoas ou empresas possa impulsionar a constante inovação e a consolidação de métodos mais eficientes, é necessário também focar naqueles que não conseguem êxito no processo competitivo.
A supervalorização do individualismo e a consequente negação dos vínculos coletivos humanos ignoram a emergência de problemas generalizados que prejudicam o funcionamento da sociedade e impactam todos os indivíduos, ainda que em diferentes graus. Questões como o desemprego, a desigualdade social e a violência, por exemplo, podem estar relacionadas aos efeitos prejudiciais de uma competição individualista extrema, demandando uma reavaliação de nossa realidade que inclua considerações de cunho coletivo.
Além disso, ao direcionarmos o foco para a conduta humana, é crucial reconhecer que existem fatores que condicionam o comportamento individual que não estão estritamente vinculados ao individualismo ou ao autointeresse. Em alguns casos, nossa conduta não busca apenas ganhos pessoais, mas é motivada por sentimento de solidariedade ou simpatia, que justificam a realização de doações e trabalhos voluntários, por exemplo. Da mesma forma, podemos orientar nossas ações por compromissos com causas maiores, sejam elas abstratas, como a justiça, ou concretas, como a preservação de um rio específico, mesmo que isso ocasionalmente limite nossos benefícios pessoais.
Além disso, o estabelecimento de padrões de comportamento social específicos pode envolver variáveis distintas do autointeresse na ação humana. Assim, realizamos ou deixamos de realizar determinadas atividades não apenas pelos resultados materiais que elas proporcionam, mas também pelos efeitos de inclusão ou pertencimento social que essas condutas geram (Conti, Alves 2019).
Siga em Frente...
Amartya Sen
Embora se possa argumentar que todas as motivações mencionadas eventualmente resultam em autointeresse, seja através da satisfação individual proveniente de condutas solidárias, comprometidas ou inclusivas, é crucial reconhecer que essas motivações se diferenciam essencialmente dos ganhos econômicos e do egoísmo mencionados anteriormente. Essa distinção é destacada pelo economista indiano Amartya Sen (1933 -), autor de uma crítica substancial ao individualismo como característica incontornável de nosso sistema econômico.
De acordo com Sen, a valorização de critérios como utilidade, racionalidade, produtividade ou eficiência, elementos importantes no regime econômico vigente no Brasil e em grande parte do mundo, não deve se dissociar do que é ético. Abordar a produção e distribuição de riqueza apenas por meio de considerações matemáticas de eficiência ou lucratividade, ou restringir o comportamento humano ao egoísmo individualista - cada um cuidando de sua própria vida - seria um erro grave e frequente na compreensão da economia. Isso ocorre porque a ética constitui uma qualidade fundamental para o sistema econômico, reconhecida inclusive pelos clássicos da teoria de livre mercado, como o próprio Adam Smith.
Portanto, percebemos que o estudo da ética não apenas é plenamente compatível com os padrões contemporâneos de organização política, econômica e social característicos do regime capitalista, mas também fornece um instrumento valioso para enfrentar os problemas sociais decorrentes desse sistema e compreender as motivações do comportamento humano nessa realidade.
Uma consequência imediata da afirmação da ética como valor indispensável no mundo contemporâneo é a necessidade de repensarmos como o indivíduo se insere na rede de relações sociais que constitui nossa coletividade. Em outras palavras, dado que o ditado popular "cada um cuida da sua vida", como vimos, não se aplica de modo absoluto em nossa realidade contemporânea, como devemos abordar essa relação entre o indivíduo e a sociedade?
Hannah Arendt
Neste estudo, as contribuições da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) se revelam incrivelmente enriquecedoras, pois o vínculo entre o ser humano e a coletividade ao seu redor impõe características específicas ao desfrute de sua liberdade e ao exercício de sua responsabilidade (Conti, Alves, 2019).
Segundo Arendt, em meio ao contexto de afirmação do sistema capitalista, que se estende dos séculos XVIII ao XX, o conceito de liberdade começa a refletir valores e perspectivas liberais, concentrando-se nos aspectos da vida privada dos seres humanos. No âmbito deste estudo, esses objetivos privados podem ser compreendidos como atividades voltadas para a satisfação de metas e necessidades estritamente pessoais, diferenciando-se, assim, de outras práticas focadas na esfera da vida pública, que, por definição, levam em consideração aspectos que ultrapassam os interesses de um único indivíduo.
Dessa maneira, o exercício da liberdade, na perspectiva privada, estaria vinculado à busca constante pelo acúmulo de riquezas ou ao consumo desenfreado, bem como ao usufruto do livre arbítrio e dos direitos civis específicos da esfera particular, alinhando-se ao individualismo já mencionado. O ser humano passaria a reduzir sua vida a um ciclo de trabalho árduo que permite a prática dessas atividades individualistas, apresentando um comportamento automatizado e superficial, no qual a exploração e a insatisfação pessoal se tornariam constantes.
Liberdade e responsabilidade
Ao criticar essa perspectiva, Arendt apresenta uma compreensão da liberdade completamente oposta a esse modelo, vinculando o conceito ao pleno exercício de práticas públicas. Argumenta que os seres humanos nascem livres para estabelecer diversas relações entre si, organizando sua vida coletiva. Assim, surge uma ligação inseparável entre liberdade e política, e o campo onde a liberdade passa a ser desenvolvida deixa de ser a esfera particular, transformando-se no espaço público. Nas palavras da autora, "ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade" (Arendt, 2005, p. 191). A classificação da liberdade como ação política destaca a potência desse valor ao estimular a ação conjunta que decide sobre questões de interesse comum, constantemente estabelecendo novas formas de construir a realidade.
Os vínculos significativos estabelecidos por Hannah Arendt entre o indivíduo e a sociedade em sua compreensão da liberdade também são evidentes quando voltamos nossa atenção para outra faceta da natureza humana: a responsabilidade. Assim como rejeita o isolamento individual sugerido pelo ditado "cada um cuida da sua vida", a visão arendtiana sobre a responsabilidade nega a ideia comum em nossa sociedade de que não temos condições para avaliar a justiça ou injustiça da conduta alheia, expressa na frase "quem sou eu para julgar o que ele fez?".
Arendt propõe que, dado que os seres humanos possuem a capacidade inata de fazer reflexões, há um comprometimento de cada indivíduo, mesmo que não seja voluntariamente assumido, em estabelecer juízos e refletir sobre os acontecimentos. A capacidade racional - e, portanto, a responsabilidade - não seria exclusividade de filósofos ou governantes, uma vez que todos têm o potencial para pensar, estabelecer juízos e recordar eventos passados, criando assim um padrão comum daquilo que aceitamos enquanto sociedade, percebido por todos os indivíduos.
Esse processo é particularmente crucial à medida que os hábitos, costumes e tradições sociais se transformam com o tempo, exigindo de nosso juízo e pensamento a responsabilidade de evitar que essas mudanças conduzam à prática do mal. Nesse contexto, a realização do mal não requer necessariamente uma intenção cruel ou o objetivo deliberado de praticar injustiças. A simples negação individual de utilizar o senso de responsabilidade pessoal, a recusa em exercer o pensamento crítico sobre a correção dos acontecimentos, pode permitir que barbaridades ocorram, um processo descrito por Arendt como a "banalidade do mal" (Conti; Alves, 2019).
A renúncia ao processo individual de pensar ou a tentativa de se eximir da responsabilidade por meio de um juízo crítico, como "Quem sou eu para julgar?" ou "Se fazem assim é porque deve estar certo...", acaba por negar a própria condição de pessoa dos seres humanos. Arendt, alinhada com a afirmação da autonomia no exercício do pensar, critica a ideia de responsabilidade coletiva, exemplificada por expressões como "É porque todo mundo faz desse jeito", já que a responsabilização coletiva impede que cada indivíduo assuma sua responsabilidade individual.
Os efeitos práticos do conceito de responsabilidade de Hannah Arendt são cruciais para reforçar a importância do estudo da ética no mundo contemporâneo, pois negam o isolamento do indivíduo em relação ao grupo social do qual ele faz parte. Isso ressalta a necessidade de analisarmos como nos inserimos na realidade brasileira e reconhecermos o compromisso de cada indivíduo perante os problemas atuais do nosso país.
Assim, percebemos que não apenas é possível manter um comportamento ético em tempos contemporâneos, como essa conduta se torna extremamente necessária para ajustarmos compreensões tradicionais de nossa sociedade, como o individualismo capitalista, assegurarmos a evolução harmoniosa de nossa espécie - respeitando nosso ambiente e perspectivas científicas - e solidificarmos uma inserção libertadora e responsável dos indivíduos em nossa comunidade (Conti; Alves, 2019).
Vamos Exercitar?
Ao analisarmos cuidadosamente as perguntas que iniciaram este estudo, constatamos que os problemas observados têm em comum o estabelecimento de uma relação de oposição, de contraste, entre a busca de ganhos individuais e as necessidades coletivas de uma sociedade. Nesse sentido, pareceria inviável assumir individualmente um comportamento baseado na valorização dos laços sociais e no aprimoramento da vida coletiva - temas essenciais à conduta ética. A necessidade de progredirmos individualmente que a realidade nos impõe deixaria em segundo plano, nessa situação de contraste entre a pessoa e o grupo, os preceitos de uma vida ética (Conti, Alves, 2019).
Entretanto, como vimos, a afirmação da esfera individual não exige necessariamente a negação da vida coletiva, e vice-versa, mas existem vínculos de complementaridade que possibilitam que esses dois campos se afirmem mutuamente.
Sob a lógica econômica do capitalismo, percebemos que o individualismo não é o único fator de motivação individual; por vezes, é justamente a consideração de aspectos coletivos que orienta a conduta individual. Além disso, identificamos que o autointeresse nem sempre produz o bem-estar coletivo, sendo necessário, mais uma vez, o reconhecimento de juízos éticos para que indivíduo e sociedade progridam de modo simultâneo.
Ao assumirmos as compreensões de Hannah Arendt para os valores da liberdade e da responsabilidade, evitamos também a relação de oposição entre a esfera privada e a vida pública. A liberdade individual está fortemente ligada à ação pública, assim como a responsabilidade individual garante o compromisso com a defesa da ética na esfera coletiva. Mais uma vez, indivíduo e sociedade se ligam, potencializando o progresso de ambos ao mesmo tempo.
Assim, percebemos que a sustentação de uma perspectiva humanista das atividades cotidianas, baseadas na ética, não só demonstra que é possível ser ético no mundo contemporâneo, mas que é necessário manter a ética como diretriz de nossas vidas, individual e coletiva.
Saiba Mais
Competição versus coordenação
A competição entre os agentes garante ao vencedor sempre o melhor resultado possível? Ou a coordenação entre os indivíduos pode levar a soluções mais proveitosas a todos eles? O matemático norte-americano John Nash (1928-2015) investigou essas questões para aprofundar o conhecimento sobre a Teoria dos Jogos, um ramo da matemática que analisa escolhas e resultados estratégicos na interação entre agentes distintos.
Assistir ao filme "Uma Mente Brilhante", cinebiografia de Nash, proporciona uma visão prática de como essa lógica é aplicável tanto em complexas discussões políticas quanto em contextos informais, como a paquera em um bar. Refletir sobre a utilidade dos argumentos explicitados no filme em relação a temas importantes de nossa atualidade se torna fundamental.
A partir da narrativa do filme, somos conduzidos a compreender como as estratégias e escolhas individuais podem impactar não apenas o indivíduo, mas também a dinâmica de grupos e até mesmo o panorama político. A Teoria dos Jogos, como evidenciada por Nash, oferece insights sobre como a cooperação pode ser mais benéfica do que a competição em determinadas situações.
A relevância desses conceitos na contemporaneidade é evidenciada quando aplicamos essa lógica a questões atuais, sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Analisar como a coordenação e a cooperação entre os agentes podem gerar resultados mais vantajosos do que uma abordagem puramente competitiva é crucial para a compreensão e resolução de desafios complexos.
Dessa forma, o filme e a Teoria dos Jogos de John Nash proporcionam uma base sólida para a reflexão sobre como as interações humanas, mesmo as mais simples, podem ser moldadas por estratégias que visam o benefício mútuo. Essa perspectiva é valiosa não apenas no campo acadêmico, mas também na aplicação prática em diversas esferas da vida moderna.
UMA MENTE brilhante. Direção Ron Howard. Produção: Brian Grazer, Ron Howard. Intérpretes: Russel Crowe, Ed Harris, Jennifer Connelly. Roteiro: Akiva Goldsman. [S.l.]: Universal Pictures; DreamWorks, 2001. (135min), son., color., 35 mm.
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Aula 3
Importância do Debate Político
Importância do debate político
Estudante, esta videoaula foi preparada especialmente para você. Nela, você irá aprender conteúdos importantes para a sua formação profissional. Vamos assisti-la? Bons estudos!
Ponto de Partida
Olá, estudante! Certamente, em algum momento, você se viu envolvido em uma discussão sobre política, mesmo que involuntariamente, não é mesmo? Seja como uma forma de manter a interação com um desconhecido em uma conversa casual no elevador, ou como uma afirmação de suas convicções mais profundas em uma acalorada discussão sobre o que julga mais importante nesta vida, a política é um tema recorrente em nosso dia a dia (Conti; Alves, 2019).
Basta recordarmos os impasses que surgem em nossas redes sociais - ou em nossas reuniões familiares - para percebermos que, mesmo entre pessoas que não dedicam suas vidas a estudar a política, este tema está presente em nossos cotidianos. Nesse sentido, não seria difícil lembrar pelo menos uma discussão política que você presenciou - ou da qual participou - nas últimas eleições, não é mesmo?
Se a frequência com que tratamos deste tema é alta, a profundidade das argumentações envolvidas nos debates rotineiros nem sempre apresenta a mesma estatura, seja em função da natureza complexa dos conceitos ou da repulsa atribuída a este assunto. O desafio que esta situação exige de nós é um estudo mais cuidadoso sobre as características da política, em benefício de nossas conversas cotidianas e de uma infinidade de aspectos da vida que se relacionam com esta matéria.
Um bom começo para nossa reflexão é questionarmos se a administração pública - atividade essencial da política - funciona de modo semelhante à administração privada. Administrar um Estado é uma empreitada semelhante a cuidar, por exemplo, de uma casa ou de uma empresa? Ou existem motivações e objetivos especiais da política que tornam essa área algo diferente daquilo que fazemos em nossa vida particular? Se, mesmo em uma empresa, a "gestão dos negócios" é algo diferente da "política da organização", seria possível tratar a qualidade das políticas públicas como sendo uma questão apenas de gestão? Se queremos um país democrático, basta que as coisas funcionem como previsto ou é preciso pensar em valores que devem orientar este funcionamento?
Essas reflexões se apoiam no conhecimento produzido por Hugo Conti e Patrícia Alves (2019) e, ao final desta aula, nossas frequentes conversas sobre política poderão se desenvolver do modo mais embasado, como também nossas próprias percepções, mais prazerosas e emancipadoras, acerca do caráter abrangente e transformador da política em nossa realidade.
Vamos Começar!
Você já parou para refletir sobre o motivo de vivermos em sociedade? Se temos interesses, afinidades e temperamentos diferentes, por que decidimos passar nossas vidas convivendo com outras individualidades tão distintas daquilo que nos constitui? Certamente, muitas pessoas encontrarão sua resposta na inércia ou na ausência de alternativas viáveis; se já nascemos em um ambiente coletivo, torna-se extremamente penoso romper com esse padrão. O questionamento persiste: o que, então, ocorre para que tenhamos essa origem já comunitária?
A percepção de que, praticamente em todo o globo, o ser humano se organiza em agrupamentos - sejam eles aldeias, tribos ou cidades - em uma prática que atravessa séculos e mais séculos da história humana, nos sugere que pode existir algum fator intrínseco à condição humana que nos torna efetivamente seres voltados à vida em grupo. Esta indagação nos remete, mais uma vez, à Grécia Antiga (Conti; Alves, 2019).
Aristóteles (384-322 a.C.)
Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), os seres humanos apresentam limitações individuais, compreensíveis em razão de nossa condição imperfeita. Essa imperfeição motiva a busca por outros indivíduos para a satisfação de nossas necessidades, em um processo de composição coletiva. Isso é particular da espécie humana, permitindo-nos acordar e discernir o que constitui o bem e o mal, o útil e o nocivo, o justo e o injusto - atividades basilares da vida coletiva.
Aristóteles argumenta que o homem é, portanto, um "animal político", ou seja, orientado por sua própria natureza para o desenvolvimento social e cívico em coletividades organizadas. Nessa condição, a estruturação de sociedades não visaria apenas à sobrevivência da espécie humana, mas também à promoção do bem-estar, compreendido igualmente como desígnio natural da essência humana. A negação do aspecto cívico do homem, na perspectiva aristotélica, produziria seres detestáveis, predispostos à exploração imoral dos outros e à guerra contínua.
Ao vincular a felicidade humana ao pleno exercício dessa natureza cívica, Aristóteles conecta a satisfação individual ao engajamento em processos coletivos de busca de um bem comum. Dessa forma, diferencia os habitantes dos cidadãos, na medida em que estes últimos não apenas residem em sociedade organizada, como os primeiros, mas também atuam em prol dessa concepção coletiva da existência humana.
Diante desse impulso para a atividade e da nossa relação com a realidade social que nos circunda, o termo "política" certamente se insere no rol de vocábulos utilizados cotidianamente, que, no entanto, não apresenta uma conceituação evidente ou um único sentido. Cabe-nos, portanto, delimitar essa pluralidade de significados aplicáveis ao termo, ressaltando os sentidos e conceitos que a palavra "política" introduz no âmbito de nosso presente estudo.
Siga em Frente...
Política: relações de poder
A raiz da palavra "política" encontra-se no idioma grego, em "ta politika", que exprime os afazeres típicos da condução da vida coletiva da polis, a cidade-Estado da antiguidade grega, compreendendo a produção legislativa, a busca pela justiça e a construção da infraestrutura local, entre outros. Segundo a filósofa Marilena Chauí (2000, p. 476), as definições de política ora classificam a dinâmica política como de interesse amplo da coletividade e, assim, de valor elevado; ora situam a política em uma redoma especializada, distante da vida ordinária do homem médio e, eventualmente, contrária às suas aspirações. Longe de constituir um descuido ou uma fragilidade conceitual, esta classificação objetiva evidenciar o que a filósofa chama de "paradoxo da política", obrigando-nos a questionar certas percepções corriqueiras sobre o tema e a redefinir o lugar da política em nossa vida cotidiana.
As potenciais contrariedades existentes neste paradoxo seriam reduzidas se compreendêssemos a política em sintonia com a ideia aristotélica de animal político, reforçando que o desenvolvimento integral das faculdades individuais exige o reconhecimento dos vínculos sociais em uma coletividade. Desta maneira, a frequente percepção de que a política é algo estranho ou mesmo contrário ao desenvolvimento pessoal de cada ser humano não teria o acolhimento que, infelizmente, ainda recebe em nossa sociedade (Conti, Alves, 2019).
De acordo com a professora Chauí (2000), é fundamental ressaltar o potencial que a política nos fornece para o ajuste de visões conflitantes e opiniões diversas sem a necessidade de recorrermos a confrontos abertos por meio do uso da força. Assim, traduzindo "o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política seja percebida como distante, maléfica e violenta?" (Chauí, 2000, p. 478). Adicionalmente, na condição de campo de deliberação para a busca do bem comum, não haveria fundamento relevante para compreender a política como um fardo a ser encarado por cada indivíduo. O combate a tais deturpações encontra-se justamente no reforço da consciência política, e não em sua recusa.
O aumento do interesse nos assuntos comunitários e do sentimento de pertencimento a um grupo social amplo eleva o zelo e a responsabilidade sobre a condução da política, permitindo-nos perceber que os diversos domínios de nosso cotidiano estão sujeitos a considerações políticas, seja em função da existência de leis e regulamentos aplicáveis a um tema ou da atuação direta do Estado. De modo semelhante, nosso trabalho, nosso lazer, nossos costumes e hábitos consolidam práticas sociais que conferem ao funcionamento coletivo certas especificidades, influenciando na organização política.
Justamente por se tratar de uma atividade potencialmente ampla, cujas intersecções abrangem todas as áreas de nossa vida rotineira, o exercício efetivo da administração pública pode apresentar significativa diferença no alcance da intervenção estatal, definindo variados sistemas políticos percebidos ao longo da história.
O exercício de pensar sobre quais devem ser as funções do Estado pode ser beneficiado pela percepção oposta, imaginando como seriam as relações humanas sem esta organização política, em uma conjuntura na qual cada homem atua isoladamente – o denominado Estado de Natureza. Para o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), esta situação resultaria em um conflito permanente, uma vez que cada indivíduo, temendo por sua vida, desenvolveria métodos para se proteger, estimulando que os demais também ampliem seu poderio; a inexistência de garantias de proteção tornaria o medo uma constante da existência humana, já que os indivíduos constituiriam ameaças uns aos outros, conforme ilustra a famosa ideia de que "o homem é o lobo do homem". Nesta situação, seria razoável que os homens acordassem em renunciar parte de suas liberdades individuais para, coletivamente, estabelecer uma autoridade superior, capaz de assegurar a paz; trata-se da formação do Estado soberano, ao qual os súditos cederiam seu poder.
Modelos de Estado
A metáfora estabelecida por Hobbes para o produto deste pacto social é a do Leviatã, um gigantesco monstro bíblico, refletindo a concepção de poder absoluto que o Estado assumiria em sua prerrogativa de manutenção da ordem. Neste sistema político, seria legítimo que o ente soberano concentrasse o poder de intervir, sem responsabilizações, em quaisquer dos domínios da vida coletiva ou de seus súditos, conforme efetivamente se observou nos modelos de monarquia absolutista contemporâneos deste pensador inglês.
No século XVIII, entretanto, a forte conexão entre o poder do monarca absolutista com as prerrogativas do Estado começa a ser questionada, sobretudo à medida que o crescimento econômico da burguesia europeia se avoluma, demandando a equivalente ampliação de direitos civis e políticos desta importante camada social. O poder concentrado do soberano, neste contexto, passa a ser compreendido como uma afronta à liberdade individual, e o estabelecimento de limites à intervenção do Estado nas vidas privada e coletiva passa a ser defendido com mais vigor (Conti; Alves, 2019).
Em linhas gerais, este liberalismo político reduz as funções do Estado, classificando-o como "Estado mínimo" ou "Estado de polícia", concentrando a atuação pública na proteção das garantias individuais, como o direito à propriedade privada, na manutenção da ordem social e na defesa frente a ameaças externas. A aplicação prática desta nova mentalidade se desenvolve por meio da imposição de constituições às quais os monarcas deveriam se subordinar, nas chamadas monarquias constitucionais. Surgem também estruturas republicanas, como nos Estados Unidos da América, e, sob a influência de John Locke (1632-1704), a lógica de separação dos poderes, na qual a existência de entes distintos constitui importante instrumento de contenção do poder do soberano.
Esta perspectiva preponderantemente individualista do Estado liberal foi fundamental para a valorização da liberdade humana e o fortalecimento do progresso econômico e científico, estimulado, por exemplo, pela livre iniciativa. No entanto, a existência de oportunidades e condições distintas para o progresso individual e o exercício dessas liberdades pessoais, em um ambiente de contração dos vínculos solidários e coletivos da sociedade, deu margem à ampliação de injustiças sociais, excluindo grande parcela das populações nacionais dos benefícios do progresso.
A reação a este processo excludente manifesta-se já no fim do século XIX e início do XX, pela retomada de concepções políticas favoráveis à maior atuação Estatal, focada, neste momento, na solução de graves problemas sociais, como a fome e o desemprego. Nas experiências socialistas observadas, sobretudo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e em países do leste europeu, o Estado assumiria a tarefa de reverter privilégios concentrados por certas classes sociais, defendendo a expansão do controle estatal sobre os meios de produção e a subsequente redistribuição das riquezas de modo mais igualitário – e teria como contrapartida a supressão de ideias de livre iniciativa e outras liberdades da concepção liberal.
O modelo de Estado de bem-estar social, por sua vez, defenderia a intervenção estatal não como detentora dos meios de produção, mas, preponderantemente, reconhecendo as funções de regulação e estímulo que a atividade estatal pode exercer na dinâmica econômica e na prestação de serviços públicos, conciliando interesses privados e públicos, a exemplo do que se observou na presidência de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) nos Estados Unidos, nos anos de 1930 e 1940.
Já nas últimas três décadas do século XX, entretanto, a compreensão da importância das intervenções estatais nos sistemas políticos volta a oscilar em direção aos preceitos do liberalismo. Os avanços tecnológicos, o desenvolvimento de mercados financeiros e o fracasso de experiências de orientação socialista podem ser citados como fatores que conferem à atuação do Estado a classificação de obstáculo à lucratividade e ao aspecto global e dinâmico do capitalismo contemporâneo. Sob tal perspectiva neoliberal, a atuação de agentes privados seria mais eficiente do que intervenções estatais nos setores da economia, justificando o estabelecimento de microestados, cuja função seria apenas garantir o funcionamento do livre mercado no qual as interações privadas acontecem.
Essas variações nos fundamentos e nas consequências da atuação estatal apresentam fortes vínculos com a capacidade de exercício dos direitos e das garantias individuais e coletivas, exercendo, portanto, influência na afirmação do caráter democrático de uma sociedade. No entanto, a classificação de um ambiente democrático não é exclusiva de um ou outro nível de intervenção estatal, mas exige uma composição de procedimentos que ora se baseia na abstenção do Estado de determinados atos, ora requer uma prestação de serviço público, a depender do preceito democrático protegido.
A democracia, ou o "governo do povo" em grego antigo, pressupõe um regime político no qual a condução dos afazeres da sociedade é definida pelos cidadãos, agindo diretamente neste processo de tomada de decisões ou por meio de representantes eleitos para tal finalidade. Assim, o estabelecimento de processos eleitorais regulares, de mecanismos de participação popular, de partidos políticos e da observância da vontade majoritária são requisitos fundamentais para uma democracia. Entretanto, a democracia não consiste apenas nestas participações e representações, mas, de acordo com conceituações contemporâneas, engloba também aspectos substantivos das condições de vida experimentadas pelos cidadãos, incluindo variáveis como o bem-estar humano, a preservação do sentimento de segurança, a proteção de minorias e a capacidade de resolução de conflitos de uma sociedade (Conti; Alves, 2019).
Desse modo, a criação de direitos e a viabilização de meios efetivos para o exercício destas prerrogativas também são elementos indispensáveis a uma democracia, exigindo que, em certas situações, o Estado tenha uma conduta negativa, abstendo-se de interferir na vida cotidiana dos cidadãos, em benefício, por exemplo, de seu direito à propriedade, à liberdade de culto e de expressão. Em outros casos, é justamente pela intervenção do Estado que os princípios democráticos são respeitados, ao propiciar condições mínimas de saúde e educação, ao promover a inclusão de grupos marginalizados, entre outros. De modo semelhante, a negação extrema da democracia, a ditadura, pode ser fortalecida pela execução arbitrária de atos do poder público, como o cerceamento de direitos políticos dos cidadãos, ou da inércia do Estado em assegurar condições básicas da dignidade humana, permitindo, por exemplo, o extermínio de grupos sociais minoritários.
Diante das múltiplas potencialidades que o estudo da política nos fornece, abordando nossa essência enquanto seres humanos, nossos hábitos e afazeres cotidianos e orientando o desfrute efetivo dos direitos elementares de um Estado democrático, parece-nos que a discussão política constitui recurso de valor inestimável para a compreensão de nossa realidade e de nossa própria existência em sociedade.
Vamos Exercitar?
As questões que iniciaram nosso estudo nos levaram até Aristóteles, pois existem elementos característicos de nossa natureza humana que nos fazem insistir na vida em coletividade. Seria razoável encontrarmos na esfera política um valor maior do que em outros núcleos de nossa existência cotidiana, não é mesmo? Se somos "animais políticos", é porque é justamente na condução das atividades típicas da existência em sociedade que o homem encontra lugar para dar vazão a suas mais elevadas potencialidades.
Assim, a política deve considerar valores – e formas práticas de implementar esses valores em nossa realidade – que são específicos de sua área de atuação, exigindo do Estado um funcionamento diferente de outras organizações sociais menos abrangentes, como domicílios e empresas privadas.
Embora a atuação do Estado tenha sido interpretada de diferentes maneiras ao longo da história, em sintonia com diferentes movimentos e ideologias sociais vigentes, é preciso reconhecer que esses diversos sistemas políticos já observados conferem ao Estado uma posição particular na organização das dinâmicas sociais. Mesmo quando se pretende reduzir a intervenção estatal ao mínimo possível, as atividades que ainda assim permanecem sob domínio do Estado – garantir direitos, por exemplo – traduzem a essência da vida política que não encontra contrapartidas nas formas de organização privada (CONTI, ALVES, 2019).
Neste mesmo sentido, os processos coletivos de definição da maior ou menor atuação estatal são também essencialmente políticos. Assim, ainda quando se pretende defender a valorização do âmbito privado da vida dos indivíduos, este posicionamento só terá relevância social se obtiver força política, algo que demonstra a amplitude e a importância deste campo.
Por tratar de valores sociais, definindo quais são os princípios mais importantes de uma coletividade e como aplicá-los, a atividade política não se restringe apenas à gestão técnica da administração pública. Se bem verdade que o estabelecimento de um conjunto de mecanismos e procedimentos práticos pode ser fundamental para a condução dos serviços públicos, a formação de convicções mais amplas que servem de orientação a uma sociedade – a democracia ou a dignidade da pessoa humana, por exemplo – asseguram que a política seja algo mais do que a simples operacionalização da vida em grupo, mas, sim, uma forma da sociedade expressar seus ideais mais fundamentais. Desse modo, mais do que uma necessidade prática, o estudo da política é algo que nos qualifica enquanto seres humanos e define a essência da sociedade que queremos formar.
Saiba Mais
A política espelhando o costume
Tradicionalmente, os cidadãos tendem a orientar suas atitudes diárias em conformidade com o que estipula a lei. Seja por convicção de que a norma determina uma conduta desejável, pelo sentimento de pertencimento a uma sociedade, ou apenas pelo receio de eventuais sanções que o descumprimento de uma regra pode gerar, os indivíduos mostram-se, em linhas gerais, dispostos a aceitar o que manda a norma. Esta relação, todavia, existe também no sentido oposto, já que não são raras as vezes em que são justamente os hábitos de conduta popular os fundamentos para a edição de uma lei.
Para leitura, indicamos esta reportagem para que você entenda melhor como este processo pode ser importante para nossa vida em sociedade.
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Aula 4
Nossos Pilares Democráticos
Nossos pilares democráticos
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Ponto de Partida
Não é raro nos deparamos com notícias ou declarações, incluindo aquelas feitas por nós mesmos, indicando que um governo adotou uma postura incompatível com os valores democráticos. Muitas vezes, é mencionada uma prática específica que constitui uma afronta à pluralidade ou às liberdades fundamentais da democracia, ou ainda, uma inclinação autoritária (Conti; Alves, 2019). Embora essas informações sejam compreensíveis para a maioria da população, explicar os conceitos subjacentes a essas afirmações simples torna-se um desafio mais complexo.
Essa dificuldade pode ser atribuída ao uso de termos comuns em nosso cotidiano, mas que, no entanto, possuem fundamentos mais elaborados e não são tão explorados em nossa vida diária (Conti; Alves, 2019). Tomando o Brasil como exemplo, podemos questionar se a realização de eleições periódicas e legítimas é suficiente para considerarmos o país uma democracia plena. Além disso, diante da ausência de representatividade das nações indígenas, que não têm um único congressista eleito desde a Constituição de 1988, como avaliar a plenitude de nossa democracia?
Outro exemplo que lança dúvidas sobre a integralidade de nossa democracia é apresentado pelos dados inquietantes compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR), os quais demonstraram que:
[...] mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas. [...] Por um lado o racismo e a discriminação que remontam à escravidão e que desde o Brasil colônia rotulam tais religiões pelo simples fato de serem de origem africana, e, pelo outro, a ação de movimentos neopentecostais que nos últimos anos teriam se valido de mitos e preconceitos para “demonizar” e insuflar a perseguição a umbandistas e candomblecistas". (Puff[U1] , 2016, [s.p.]).
Se um grupo social específico, como as comunidades indígenas, não tiver meios institucionais adequados para expressar publicamente suas opiniões e posições, isso comprometeria o caráter democrático do país? E se essa restrição ocorresse no âmbito religioso, prejudicando, por exemplo, o pleno exercício das crenças de matriz africana, o Brasil ainda poderia ser considerado uma democracia? Ou a relativamente menor representatividade dessas comunidades diminuiria a importância de garantir sua presença e expressões em nosso país?
Essas situações reais, que impactam as comunidades tradicionais da história e identidade brasileiras, nos conduzem a reflexões teóricas, embasadas na obra de Hugo Conti e Patrícia Alves (2019). Questionamos quais seriam os elementos essenciais de um regime democrático e se esses fundamentos da democracia permaneceram constantes ao longo do tempo ou se sofreram alterações.
Vamos Começar!
Democracia moderna
Em grande medida, o conceito de democracia nos transmite a ideia de um regime político no qual os cidadãos participam na condução do governo de uma coletividade, seja de maneira direta, como numa consulta popular sobre um tema importante, ou por meio da representação, onde os cidadãos elegem mandatários para tomar decisões em nome da coletividade, como nas eleições. Esse sentido de participação popular, derivado do termo democracia, já se explica nas origens da palavra, que, em grego antigo, une demos (povo) e kratos (poder), formando o poder do povo ou o governo do povo. Embora essa noção de participação popular esteja vinculada ao termo democracia desde a Grécia Antiga até os dias atuais, outras concepções foram gradualmente adicionadas ao conceito para chegarmos à compreensão atual de democracia.
Esse funcionamento deve ser entendido no contexto em que o argumento foi produzido, no qual a participação política era restrita a alguns homens considerados aptos para a vida pública, excluindo escravos, estrangeiros e mulheres da dinâmica política. Dessa forma, o desenvolvimento de novas concepções sobre a titularidade de direitos civis e políticos, ampliando a categoria de indivíduos considerados capacitados para a atuação pública, certamente terá impacto na compreensão do conceito de democracia. Portanto, podemos avançar até o surgimento dos ideais liberais e do questionamento dos Estados absolutistas europeus, a partir do século XVII.
Nesse período da história europeia, três processos políticos e sociais podem ser apontados como determinantes para a ressignificação do Estado, das prerrogativas individuais e, consequentemente, do aspecto democrático da era moderna. A Revolução Inglesa (1640-1688), fortemente influenciada pelo pensamento de John Locke (1632-1704), foi essencial para limitar o poder absoluto das monarquias absolutistas e está relacionada à consolidação de direitos naturais dos indivíduos, nascidos livres e iguais, capazes de exercer o poder político conforme determinado pela lei, como exemplificado pelo Bill of Rights ("Carta de direitos") de 1689. A Revolução Americana (1776), por sua vez, foi fundamental para a afirmação das ideias de supremacia da vontade popular, liberdade de associação e estabelecimento de mecanismos de controle permanente sobre o governo, conforme defendido por Thomas Jefferson (1743-1826). Por fim, a Revolução Francesa (1789) centralizou diversos interesses sob a ideia de nação e estabeleceu preceitos importantes sobre a separação entre política e religião, ampliando o alcance dos homens nascidos livres e iguais em direitos (Conti; Alves, 2019).
As consequências reais observadas nas sociedades que passaram pelos movimentos revolucionários, assim como os valores e ideias que surgiram nessa mentalidade burguesa e liberal, foram determinantes para moldar uma nova concepção, mais moderna, da ideia de democracia. Esse novo modelo democrático tornou-se extremamente emblemático pelos estudos do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), sobretudo devido à sua obra "A democracia na América", resultado de investigações sobre instituições e costumes nos Estados Unidos da América, durante os anos de 1831 e 1832 (Conti; Alves, 2019).
Para Tocqueville, na época, o regime democrático tornou-se uma tendência ampla e inevitável nas sociedades, caracterizado, em linhas gerais, por uma igualdade de condições – seja legal, cultural ou política – incompatível com qualquer regime de castas sociais ou diferenças sociais hereditárias. Essa situação permitia certa mobilidade social e facilitava o acesso a postos profissionais ou políticos, constituindo os chamados "fatores geradores de igualdade". Para o pensador francês, é indispensável para um ambiente democrático a efetivação de uma constante atuação política dos cidadãos, exercida não apenas pelo voto, mas também nas atividades administrativas, partidárias ou associativas.
Aprofundando suas considerações sobre o aspecto da igualdade, Tocqueville destaca o risco que o excesso de homogeneização de uma sociedade poderia representar. Nesse cenário, a homogeneidade excessiva estabeleceria uma certa tirania exercida pela maioria dos habitantes, impedindo a diversificação de expressões científicas, filosóficas ou artísticas. Segundo o autor, seria crucial encontrar um equilíbrio entre a busca pela igualdade e a preservação das liberdades individuais, garantindo que a concepção de igualdade não seja incompatível com a pluralidade no corpo social.
Nesse sentido, sempre que um consenso majoritário sobre um determinado tema é estabelecido sem o devido respeito aos legítimos direitos dissidentes – os direitos das minorias que diferem dessa concordância predominante –, enfrentamos um caso de tirania da maioria. O desrespeito aos direitos minoritários ou às liberdades individuais pode se manifestar de diversas formas, afetando expressões individuais ou coletivas.
A combinação desses dois elementos fornece a base teórica para a formação de outro aspecto indispensável à noção contemporânea de democracia: o direito à alteridade ou direito à diferença. Se os indivíduos são livres e devem ser tratados sem quaisquer preferências injustificáveis, é natural que os elementos relacionados à identidade de uma pessoa possam ser expressos da maneira que lhe convier. Essas manifestações, por mais plurais que sejam, devem usufruir das mesmas garantias jurídicas que as demais.
A alteridade torna-se particularmente relevante no que se refere às liberdades de expressão e religião, dada a importância dessas áreas para a afirmação da personalidade de um indivíduo. Assim, o direito que todos os seres humanos têm de manifestar livremente suas ideias, pensamentos e opiniões, bem como buscar fontes de informação, sem repressão ou censura, reflete o respeito conferido às sociedades modernas à autonomia e à capacidade de raciocínio, discernimento e exteriorização da consciência individual. Semelhantemente, essa consideração da autonomia humana deve abranger também suas crenças – ou até mesmo a possibilidade de não ter crença alguma.
Contudo, embora os conceitos de liberdade de expressão e liberdade religiosa incentivem a afirmação do que um indivíduo pensa e crê, em ambientes democráticos, esses conceitos também trazem uma contrapartida crucial: o respeito ao que o indivíduo não pensa e não crê. Essas liberdades não se restringem a uma única opinião ou a uma religião específica, abrangendo necessariamente todas as opiniões e crenças compatíveis com um ambiente democrático. Desse modo, o exercício pleno dessas liberdades não se limita a afirmar aquilo que se gosta ou preza, mas também deve consolidar o respeito pelo que difere da própria identidade, em harmonia com a ideia de pluralidade aqui trabalhada.
Existindo significativas contenções às liberdades características de um regime democrático, com limitações ao pluralismo que poderia emergir em meio à comunidade, estamos diante de um regime autoritário. A diversidade de maneiras pelas quais essas restrições são impostas à sociedade, assim como a variedade de prerrogativas que a democracia oferece, pode permitir que alguns dos componentes da dinâmica democrática se conservem, como o voto. Nesse caso, com resquícios da dinâmica democrática, embora não se manifeste em sua totalidade devido a condutas governamentais pouco tolerantes e intransigentes, podemos considerar que se trata de uma democracia autoritária.
Siga em Frente...
Democracia x Autoritarismo
Dessa forma, a democracia autoritária traduz a existência conjunta de alguns dos elementos constitutivos de um ambiente democrático, como a realização de processos eleitorais ou a manutenção de direitos para grupos específicos da população, com a eliminação de outras características típicas do regime democrático, como a supressão do direito das minorias ou a limitação de certas liberdades. Observa-se, na verdade, uma versão falha e limitada de uma democracia tradicional, seja por deficiência involuntária no funcionamento das instituições, reduzindo o alcance dos valores democráticos na sociedade, ou pelo objetivo expresso de certo grupo social de impor sua vontade aos demais.
A possibilidade de que esse autoritarismo seja incorporado ao funcionamento dos Estados já era prevista no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Segundo o filósofo, a formação da sociedade civil resulta da transferência das liberdades individuais dos homens a um governo por meio de um pacto social, no qual o governante se compromete a buscar o bem comum. Entretanto, prossegue o pensador, se esse acordo não se estabelece em condições de simetria entre as partes ou sob conjunturas de limitação da liberdade de um dos pactuantes, teríamos, na verdade, um pacto de submissão responsável por um regime autoritário e despótico. Adicionalmente, segundo esse autor, a soberania resultante de um pacto social não seria detida pelo governante, mas permaneceria em posse do povo, coletivamente. A soberania popular seria absoluta, conferindo ao corpo social um poder sobre todos os indivíduos considerados isoladamente, uma vez que, ainda de acordo com Rousseau, o interesse do indivíduo estaria incluído no interesse público. Nesse contexto, mais uma vez nos deparamos com a possibilidade do surgimento de uma tirania da maioria, caso as prerrogativas de grupos minoritários, ou mesmo de indivíduos, sejam desconsideradas em função da vontade popular absoluta (Conti; Alves, 2019).
Em termos práticos, tais experiências autoritárias foram observadas com relativa frequência ao longo do século XX, constituindo certos padrões políticos identificados pelos estudiosos do tema. Em linhas gerais, esses regimes autoritários apresentavam elementos comuns, como afrontas e abusos às liberdades civis; a falta de separação – legal ou efetiva – entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, com a primazia do primeiro sobre os outros dois; o controle dos meios de comunicação; a censura; a eliminação, redução ou manipulação de procedimentos eleitorais; o antiliberalismo; o nacionalismo exacerbado; o militarismo; o unipartidarismo político, entre outros. Exemplos clássicos nesse sentido incluem os regimes nazista na Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945) e o fascismo italiano de Benito Mussolini (1883-1945), ambos chegando ao poder por vias democráticas; o totalitarismo soviético de Joseph Stalin (1878-1953); e os regimes ditatoriais do terceiro mundo, como o período militar brasileiro compreendido entre 1964 e 1985.
A forma mais extrema de autoritarismo, no entanto, observada no século XX, talvez seja o extermínio de judeus que compôs o Holocausto nazista. Esse genocídio perpetrado pela Alemanha hitlerista dizimou aproximadamente 6 milhões de pessoas ao longo das décadas de 1930 e 1940, sendo determinante para a reação internacional que culminaria no maior conflito armado da história. A extensão geográfica, a duração e a alta mortalidade dos embates armados desenvolvidos no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) evidenciam os limites da concertação da comunidade internacional e a ausência de uma instituição centralizada capaz de mediar as desavenças entre países. Isso levou os Estados a entrarem em acordo para a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 (Conti; Alves, 2019).
ONU - Organização das Nações Unidas
A ONU é uma organização internacional que possui direitos e deveres na ordem global. No entanto, é importante ressaltar que ela não possui hierarquia superior aos países que a compõem. Isso ocorre porque, da mesma forma que os indivíduos são sujeitos do direito interno de seus países, os Estados constituem sujeitos do direito internacional público. Os indivíduos encontram na atuação do Estado a hierarquia superior para impor, dentro de seu território, os procedimentos a serem observados por todos, algo que não se verifica na ordem internacional.
Nota-se, portanto, que as decisões relativas à paz e à segurança tomadas pelo Conselho de Segurança da ONU serão consideradas obrigatórias para todos os países, conferindo a este órgão um poder sem precedentes na ordem internacional (Conti; Alves, 2019). Contudo, é importante ressaltar que a composição desse conselho deriva do contexto imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, fazendo com que, desde 1945, esse órgão possua os mesmos cinco membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido), ao lado de outros dez membros rotativos com poderes reduzidos (Conti; Alves, 2019).
Tratando-se de um órgão extremamente poderoso, as fragilidades no que se refere ao aspecto democrático de seu processo decisório são evidentes. Pode-se afirmar, portanto, que, assim como ocorre em âmbito interno, a falta de pluralidade e diversidade na dinâmica internacional também caracteriza uma limitação indesejada ao funcionamento democrático.
Assim, ao final desses mais de dois mil anos de história da democracia, avaliando considerações teóricas e aplicações práticas do conceito em diferentes contextos e gradações, concluímos que a pluralidade não configura um requisito obrigatório dos ambientes democráticos. Forçá-la contra a liberdade dos indivíduos seria, inclusive, antidemocrático. No entanto, existindo qualquer indício de uma diversidade espontânea, levada a cabo por seres humanos na plena afirmação de suas mais variadas formas de manifestação individual, é dever do regime democrático assegurar o respeito, a tolerância e a tutela dessa diversidade, encarada não como discórdia social, mas como uma riqueza inigualável da natureza humana.
Vamos Exercitar?
À luz do que estudamos nesta aula, percebemos que o conceito de democracia passou por uma longa evolução histórica para nos fornecer, atualmente, uma compreensão muito além do simples estabelecimento de mecanismos eleitorais ou de tomadas de decisões sobre assuntos da vida em coletividade. A democracia, em sua concepção vigente, reveste-se também de fundamentos e valores voltados ao pleno desenvolvimento de nossas capacidades e liberdades, em razão do simples fato de sermos considerados sujeitos dotados de direitos e prerrogativas essenciais (Conti; Alves, 2019).
Nesse contexto, o governo, a sociedade e o indivíduo democráticos não devem se ater a raciocínios matemáticos para determinar qual o grupo social mais numeroso ou o rol de direitos de maior representatividade que merecem prevalecer em detrimento dos demais; a mera afronta das prerrogativas dessas comunidades – ou mesmo desses indivíduos – já é motivo para prejudicar o aspecto democrático de um sistema político.
As liberdades de expressão, de crença ou qualquer outra forma de manifestação individual ou coletiva, desde que não constituam ameaças ao sistema democrático, são, por si só, valores indispensáveis à manutenção de uma dinâmica democrática, independentemente da frequência com que aparecem nessa sociedade. A imposição de critérios estranhos ao conceito de democracia – “o que produzem para a sociedade?”, “estão em conformidade com nossos padrões sociais?” – como condição para a concessão de direitos não somente fragiliza o aspecto democrático de um regime, como tende a criar mecanismos autoritários extremamente nocivos à pluralidade característica da natureza humana, sob uma empobrecedora “ditadura da maioria”.
Assim, retomando os casos práticos que deram partida à nossa análise, pouco importa que as comunidades indígenas sejam minoria em nosso país ou que apresentem certos modos de vida particulares; é fundamental que asseguremos mecanismos institucionais de representatividade a essas comunidades, sob pena de termos uma democracia incompleta. Caso esses povos não tenham acesso direto aos processos decisórios e aos instrumentos de poder da sociedade brasileira, suas liberdades se veem reduzidas, suas necessidades ignoradas, e a própria democracia nacional, como um todo, encontra-se fragilizada. A mesma lógica se aplica à intolerância religiosa promovida contra as crenças de matriz africana. A despeito de serem práticas minoritárias em meio à população nacional, a repressão a seus rituais e suas manifestações, bem como o racismo e o preconceito que frequentemente justificam essas atitudes, são uma afronta à liberdade de religião, indispensável ao pluralismo democrático.
Saiba Mais
Repare como o intervalo temporal de mais de 200 anos que separa a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776), a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) não foi suficiente para desfazer a influência de certas ideias liberais, fortalecidas ao longo do século XVIII e relevantes até os dias de hoje:
- Declaração de Independência dos Estados Unidos da América
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. (Hancock, 1776, [s.p.]) - Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão
Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. (Declaração..., 1789, [s.p.]) - Constituição da República Federativa do Brasil
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]. (Brasil, 1988, [s.p.]).
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Encerramento da Unidade
Ética e Política
Videoaula de Encerramento
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Ponto de Chegada
Olá, estudante! Para aprimorar a competência desta unidade, que consiste em compreender criticamente os elementos essenciais relacionados à ética, dilemas morais e tensões políticas atuais na sociedade brasileira, visando a uma formação humanista, é necessário familiarizar-se, inicialmente, com os conceitos fundamentais que compõem uma intrincada teia de relações, valores e estruturas.
Observe que, em uma sociedade, a busca pela ação correta pode abranger processos amplos de nossa vida em coletividade e, também, decisões de nossa esfera privada. A mesma amplitude deve ser levada em consideração na análise das relações de poder, uma vez que se manifestam em escalas elevadas, no contexto do nosso cotidiano individual. Para examinar a diversidade de fatores da vida coletiva em nosso país, é imprescindível incorporar, em nossa análise, estas duas perspectivas: princípios e poder.
Portanto, recorremos a dois domínios do conhecimento voltados para essas questões: a ética e a política. Embora esses temas estejam frequentemente presentes em nosso cotidiano, a exploração mais aprofundada desses campos do conhecimento é um suporte fundamental para a compreensão do ambiente que nos envolve, inclusive em nossa vida diária.
Para isso, utilizamos referências tradicionais do pensamento e da filosofia política ocidentais, que servem como instrumentos para refletirmos sobre dilemas morais e impasses políticos observados na contemporaneidade brasileira, abrangendo diversas áreas, como meio ambiente e diversidade étnico-cultural da população brasileira.
Dessa forma, a partir de uma compreensão humanista do que constitui a vida em sociedade, torna-se possível identificar os requisitos para uma participação cidadã na comunidade que nos acolhe. A análise desses dois temas clássicos das ciências humanas, ética e política, ganha relevância especial na atualidade, uma vez que seus amplos campos de estudo podem contrastar com a precisão e a especialização de novas áreas do conhecimento humano.
É Hora de Praticar!
O estudo de caso apresenta o trecho da seguinte reportagem:
“Presidente do TJ-SP considera ético recebimento de auxílio-moradia
Assunto tem causado polêmica após divulgação de que magistrados com imóveis próprios fazem uso do benefício”.
Por Thais Skodowski, do R7, em 05/02/2018 - 13h53 (Atualizado em 05/02/2018 - 15h41): “O novo Presidente do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) [...] afirmou nesta segunda-feira (5) que não vê problemas em juízes com imóvel próprio na cidade onde atuam receberem auxílio-moradia. - Eu acho que é [ético] porque a Lei Orgânica da Magistratura Nacional prevê (o recebimento do benefício). O auxílio-moradia é um salário indireto porque é previsto como tal na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. [...] O auxílio-moradia a membros do Judiciário tem causado polêmica após reportagens recentes mostrarem que juízes com imóveis próprios receberam o benefício. A maior parte da categoria defende o pagamento dessa verba como forma de composição do salário defasado — a última correção foi em 2015”. (Skodowski, 2018)
Os estudos apresentados possibilitam uma reflexão abrangente sobre o tema, permitindo contemplar a complexidade e profundidade da reportagem. Eles fornecem ferramentas para compreender a questão nas suas dimensões moral, ética, política, econômica, cultural e histórica. As discussões propiciam uma análise sobre como a previsão na lei para a concessão do auxílio-moradia aos magistrados transcende o âmbito estritamente jurídico, articulando-se com todas essas dimensões.
A partir disso, surge a possibilidade de questionar quais correntes filosóficas podem fundamentar argumentos a favor ou contra o auxílio, dado que essa discussão abrange os domínios ético e político.
Reflita
Atuamos coletivamente em busca de estabelecer o que consideramos correto, ou será que nossa realidade pode ser mais bem compreendida por meio das relações de poder que se estabelecem em nosso país? Até que ponto a intervenção do Estado brasileiro em nossa sociedade é justificada? A maioria deve sempre prevalecer ou meu ato individual pode ter impacto na sociedade?
As respostas a essas indagações, assim como a outras, são exploradas à medida que examinamos os fundamentos da filosofia ética e suas interações com os dilemas que surgem em nosso cotidiano. Além disso, analisamos os diferentes tipos de organizações políticas e seus vínculos com o nosso desenvolvimento enquanto sociedade.
Resolução do estudo de caso
A polêmica abordada na reportagem contrapõe a argumentação da maioria dos juízes, que defende que o auxílio-moradia resolveria o atraso no reajuste salarial da categoria, à ideia de que o benefício não seria devido aos profissionais que possuem imóveis nas localidades de trabalho. O primeiro ponto de vista está atrelado à lógica consequencialista, pois justifica o recebimento do benefício pelos efeitos práticos desse pagamento, envolvendo considerações pragmáticas, como a recomposição do salário, que, a princípio, não estão diretamente relacionadas com a finalidade do benefício (ter ou não um imóvel).
A segunda perspectiva, por outro lado, condiciona o direito ao benefício à condição de não ser proprietário de imóveis na localidade de trabalho, independentemente da ocorrência de reajustes salariais. Isso estabelece uma categorização principiológica amplamente válida para o surgimento desse direito, caracterizando-se, portanto, como um raciocínio deontológico. Esse raciocínio identifica na própria ação de receber o benefício a correção ou incorreção dessa conduta, sem considerar suas consequências pragmáticas.
Além disso, categorizar um comportamento específico como ético ou antiético pressupõe um exercício filosófico e racional mais profundo, com o intuito de evitar confusões entre os conceitos de moral e ética.
Dê o play!
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Referências
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